O Dia Mundial da Criatividade e a evolução da importância da criatividade

 

“Criatividade é a capacidade de se inspirar no que existe, interagir com esses elementos, fazer diferentes combinações e dar novos significados a elas.”

Otavio Falcão

 

A Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu, em 2017, o dia 21 de abril como o Dia Mundial da Criatividade e Inovação, para aumentar a conscientização sobre o papel da criatividade em todos os aspectos do desenvolvimento humano.

Para dar visibilidade e ressonância ao fato, um brasileiro, Lucas Foster, idealizou o Festival Mundial da Criatividade, evento que em 2023 teve sua sexta edição e foi realizado em dezenas de cidades de 12 países, com programações gratuitas, sendo a cidade de São Paulo a que teve uma oferta de atrações mais ampla e diversificada. Nos três dias em que foi realizado, de 20 a 22 de abril, o Festival teve palestras, oficinas, workshops e shows em várias localidades no centro histórico da cidade.

A escolha dos locais foi decidido pelos organizadores e patrocinadores com o objetivo de contribuir para a revitalização dessa região, que, lamentavelmente, vem passando por intenso processo de degradação. Participei de uma série de eventos no Centro Cultural do Banco do Brasil, no Farol Santander, no Espaço Aroo (situado no rooftop do 6º andar do Shopping Light, ao lado dos restaurantes Abaru e Priceless) e no Café Girondino.

O livro Economia + Criatividade = Economia Criativa, cuja segunda edição ampliada encontra-se nas etapas finais de produção, teve um de seus lançamentos como parte da programação de 2022 deste Festival.

Ao participar de um evento de tal magnitude, não pude deixar de recordar a rápida evolução dos estudos e pesquisas sobre a  criatividade verificada nas últimas décadas.

Como habilidade do ser humano, a criatividade está presente desde que o homem passou a habitar a terra. Evidências disso podem ser vistas nos desenhos encontrados em cavernas e escavações dos primórdios da nossa existência, bem como na criação do fogo, da roda e de outros utensílios que o ajudaram a enfrentar e superar ameaças, perigos e adversidades.

De forma mais elaborada, há uma grande quantidade de obras que expressam enorme poder criativo em vários campos de atividade. No século XIII, por exemplo, Dante Alighieri (1265-1321) escreveu obras que se tornaram clássicas, entre as quais A Divina Comédia. No século XVI, permanecendo no campo da literatura, sobressaem os nomes de  Luís de Camões (1524-1580), Miguel de Cervantes (1547-1616) e William Shakespeare (1564-1616). Na pintura, Giuseppe Arcimboldo (1527-1593) pintou figuras humanas constituídas por diferentes elementos da natureza e outros produtos, tais como frutas, legumes, animais e livros (figuras 1 e 2).

                                 Figura 1 – “O bibliotecário”                               

 Figura 2 – “Primavera” 

Outros gênios, de certa forma contemporâneos de Arcimboldo, deixaram exemplos de sua extraordinária capacidade criativa como, por exemplo, Leonardo da Vinci (1452-1510), que pintou em 1507 o quadro mais famoso do mundo, a Mona Lisa, e Michelangelo Buonarroti (1475-1564) de quem a obra mais famosa é o teto da Capela Sistina (figura 3).

Figura 3 – O teto da Capela Sistina, pintado por Michelangelo

No século seguinte, acompanhando o crescimento econômico da Holanda, surgiram pintores importantes como Rembrandt (1606-1669), Vermeer (1632-1675) e Goya (1596-1656).

Na música, tivemos no século XVII a explosão do movimento barroco,  com o surgimento das óperas e das orquestras de câmaras, assim como o virtuosismo dos músicos ao tocar os instrumentos. Os maiores representantes da música barroca são Antonio Vivaldi e Johann Sebastian Bach. Já no classicismo, que corresponde ao período que vai de 1750 a 1830, a música instrumental e as orquestras se destacam,  e os seus maiores representantes são Haydn, Mozart e Beethoven.

Se pensarmos na criatividade aplicada à vida material, na forma de inovações, há exemplos relevantes do poder criador do homem por ocasião da revolução industrial, com o surgimento de máquinas que melhoraram significativamente o padrão de vida dos habitantes dos países em que ela ocorreu, começando pela Inglaterra em meados do século XVIII e espalhando-se por outros países europeus a partir do século seguinte. Vale registrar que muitas das máquinas criadas nessa época o foram por trabalhadores comuns e não por indivíduos que se dedicassem à pesquisa ou à atividade científica.

Eu poderia continuar mencionando outros notáveis exemplos dos séculos XVII, XVIII, XIX e início do século XX. Porém, apesar de todas essas evidências da presença da capacidade criadora do homem, a criatividade só passou a ser objeto de pesquisa e estudo sistemático depois do final da Segunda Grande Guerra, mais precisamente, a partir de 1950. Desde então, podem ser identificadas cinco gerações que se dedicaram ao estudo da criatividade, como se vê na tabela 1.

Tabela 1 – Cinco gerações no estudo da criatividade 

Denominação Ênfase Época
Pensamento criativo Desenvolvimento de habilidades Década de 1950
Solução criativa de problemas Produtividade e competitividade Década de 1960
O viver criativo Autotransformação Década de 1980
Criatividade como valor social Solução de problemas sociais, aberta à vida, à juventude, ao cotidiano Década de 1990
Economia criativa Geração e exploração da propriedade intelectual; economia do intangível Década de 2000
Fonte: MACHADO, 2019, p. 339.

Para ilustrar essa evolução, vou focalizar a contribuição de um grande expoente de cada uma dessas gerações.

A primeira, voltada para o “pensamento criativo”, enfatizava o desenvolvimento de habilidades (anos 1950). Essa geração não conseguiu despertar o interesse da sociedade em geral para o tema da criatividade, razão pela qual os estudos e eventuais avanços ficaram restritos aos limites dos consultórios e das clínicas de psicólogos e neurocientistas que se debruçaram sobre ele. A noção de criatividade esteve nessa fase associada à capacidade de fazer algo diferente. O grande expoente dessa geração foi, de acordo com especialistas como Alencar e Fleith e de la Torre, J. P. Guilford, cujas palavras para a Associação Americana de Psicologia em 1950, contidas em apenas 10 páginas, possuem valor histórico. Representa a ata de suas origens, a ponto de alguns autores considerarem que o conceito de criatividade estava surgindo naquela hora. O título da conferência: CRIATIVIDADE, vem a ser como o batismo da criatividade. Com termos de maior alcance, é possível dizer que J. P. Guilford faz seu Manifesto da criatividade.

A segunda, voltada para a “solução criativa de problemas”, dava ênfase à produtividade, alertando, assim, para um fato relevante para o mundo dos negócios: a criatividade pode se constituir numa importante ferramenta para a obtenção de vantagem competitiva. Para essa geração, que tem em Alex Osborn, o criador do brainstorming, seu maior expoente, a criatividade incorpora um fator fundamental para quem vive num ambiente competitivo, a agregação de valor. Juntamente com Sidney Parnes, Osborn elaborou um modelo de solução criativa de problemas que alternava o pensamento divergente comandado pelo lado direito do cérebro, e o pensamento convergente, comandado pelo lado esquerdo do cérebro, de larga utilização até os dias de hoje (figura 4).

             Fonte: Creative Education Foundation

 Figura 4 -Modelo Osborn-Parnes (ou CPS)

Já a terceira geração dá ênfase à ideia da autotransformação, acreditando que uma pessoa não poderá desenvolver a criatividade, mudando a maneira de ver o mundo e de fazer as coisas, se antes ela não se transformar por dentro. Para tanto, é necessário investir primeiro no autoconhecimento; depois, uma vez estando a pessoa convencida da necessidade de desenvolver a criatividade, na autotransformação. O grande expoente dessa geração é David de Prado, primeiramente na Universidade de Santiago de Compostela, com seus programas de especialização e de pós-graduação em Creatividad Aplicada Total. Atualmente, tais atividades prosseguem por meio do IACAT – Instituto Avanzado de Creatividad Aplicada Total (http://www.iacat.com). 

Passada a fase da disseminação da importância da criatividade, ocorrida nas duas últimas décadas do século XX, teve início a quarta geração que tem Saturnino de la Torre como um de seus maiores expoentes. Situada na transição do século XX para o XXI, essa geração é bem diferente e aponta para novos desafios. Um século depois de seu nascimento, a criatividade se reveste de um caráter mais amplo, assumindo uma preocupação muito mais acentuada. É como se a passagem para um novo século significasse a celebração da maioridade da criatividade, que sai da vida familiar acadêmica para abrir-se à vida social como em outro tempo o fizeram a educação, a saúde ou a defesa do meio ambiente.

Por fim, a quinta e última geração, que se desenvolveu no início deste século, é representada pela economia criativa e sua origem reside na habilidade, criatividade e talentos individuais que, empregados de forma estratégica, têm potencial para a criação de renda e empregos por meio da geração e exploração da propriedade intelectual (PI). Seus principais expoentes são o canadense Richard Florida e o britânico John Howkins. Neste artigo, porém, eu gostaria de realçar a contribuição de Cláudia Leitão, idealizadora e primeira gestora da Secretaria de Economia Criativa, que realizou um extraordinário trabalho nos dois anos de sua gestão. No Plano da Secretaria da Economia Criativa aparece a seguinte definição: “A economia criativa contempla as dinâmicas culturais, sociais e econômicas construídas a partir do ciclo de criação, produção, distribuição/circulação/difusão e consumo/fruição de bens e serviços oriundos dos setores criativos, cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica”. Em sua constante preocupação de dar um caráter nacional à economia criativa brasileira, Cláudia Leitão não cansa de enfatizar seus pilares fundamentais: a diversidade cultural, a inovação, a sustentabilidade e a inclusão social.

Verifica-se, portanto, uma importante mudança: até a terceira geração, os estudos e pesquisas sobre criatividade estavam mais voltados para a dimensão individual; a quarta e a quinta gerações, por sua vez, revelam uma preocupação mais ampla, caracterizada pela busca de soluções para questões sociais e para a formulação de políticas públicas.

Como um dos pioneiros a se envolver seriamente com a criatividade no Brasil, não posso deixar de registrar minha satisfação ao ver sua importância cada vez mais reconhecida. Encerro manifestando meu desejo de que essa importância seja também cada vez maior entre os responsáveis pelos rumos de nossa educação e os gestores públicos e privados.

 

Referências

ALENCAR, Eunice M. L. Soriano de; FLEITH, Denise de Souza. Criatividade: múltiplas perspectivas. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2003.

BAIROCH, Paul. Revolução industrial e subdesenvolvimento. Tradução de José Augusto Guilhon Albuquerque. São Paulo: Brasiliense, 1976.

DAVILA, Anapaula Iacovino; MACHADO, Luiz Alberto; PAULA, Mauricio Andrade de; SANTOS, Sonia Helena. Economia + Criatividade = Economia Criativa. São Paulo: Scriptum, 2021.

FLORIDA, Richard. A ascensão da classe criativa. Tradução de Ana Luiza Lopes. Porto Alegre: L&PM, 2011.

GUILFORD, J. P. Creatividad, en BEAUDOT, A. La creatividad. Madrid: Narcea, 1980, pp. 19-34.

HOWKINS, John. Economia criativa: como ganhar dinheiro com ideias criativas. Tradução de Ariovaldo Griesi. São Paulo: Makron Books, 2013.

KRIEGESKORTE, Werner. Giuseppe Arcimboldo 1527 – 1593. São Paulo: Paisagem, 2006.

MACHADO. Luiz Alberto. Viagem pela economia. São Paulo: Scriptum, 2019.

PLANO da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações, 2011 – 2014. Brasília: Ministério da Cultura, 2011.

TORRE, Saturnino de la. Creatividad plural: sendas para indagar sus múltiples perspectivas. Barcelona: PPU, 1993.