A Ásia pede passagem

“A Índia tem sido, há cerca de 20 anos, a grande economia com o segundo maior ritmo de crescimento no mundo (atrás da China). Nos anos recentes, porém, a Índia tem conseguido acelerar o crescimento em razão de uma série de revoluções.”

Fareed Zakaria

A recente viagem à China do presidente Luiz Inacio Lula da Silva e a notícia da Organização das Nações Unidas de que a Índia ultrapassou a China como país mais populoso do mundo fizeram com que o noticiário fosse inundado com matérias sobre esses dois países.

Dentre essas matérias, chamaram especialmente minha atenção os recentes artigos sobre esses dois gigantes e sua influência na economia mundial publicados no jornal O Estado de S. Paulo de autoria de dois dos mais respeitados analistas de política internacional, Thomas Friedman e Fareed Zakaria.  No dia 23 de abril, Friedman, que é articulista do New York Times, referiu-se à rivalidade das duas superpotências da atualidade no artigo “A raiz da crise de confiança entre EUA e China”. No dia 29 de abril, Zakaria, que é colunista do Washington Post, referiu-se à Índia, no artigo “A hora da Índia finalmente chegou”.

No artigo sobre a China, onde esteve pela primeira vez desde o início da covid, Friedman aponta o rápido azedamento das relações entre China e Estados Unidos alimentado por questões episódicas como a guerra entre Rússia e Ucrânia e a independência de Taiwan, e alerta para o peso da tecnologia na disputa, lembrando que a situação mudou quando a maior parte do que a China vende para o resto do mundo deixou de ser em sua maioria de bens simples e de pouco valor agregado.

Já no artigo sobre a Índia, onde esteve na segunda quinzena de abril, Zakaria chamou atenção para o fato de o país já ser atualmente o mais populoso do mundo, superando a China, e prevê que deve se tornar também a economia de mais rápido crescimento, graças, sobretudo a três revoluções: o programa de identificação mais sofisticado do mundo, de acordo com Paul Romer, chamado Aadhaar; o amplo e fácil acesso à internet propiciado pelos telefones e pacotes de dados baratos, chamado Jio; e, por fim, a revolução em infraestrutura, resultante de investimentos maciços em estradas, aeroportos, estações de trem, capacidade portuária e outros projetos.

A leitura dos dois artigos revela algumas semelhanças, entre as quais o desafio de transformar crescimento econômico, que leva em conta apenas aspectos quantitativos, indicados pela variação do PIB, em desenvolvimento, que além dos aspectos quantitativos, leva em conta também os qualitativos, indicados pela melhora do padrão de vida do grosso da população, incluindo fatores como saúde, educação e renda per capita, variáveis utilizadas pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) ao calcular o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), como se vê abaixo.

Crescimento econômico = aspecto quantitativo
Desenvolvimento = aspecto quantitativo + aspecto qualitativo

A semelhança entre China e Índia pode ser observada no enorme desafio enfrentado pelos dois países de distribuir melhor a riqueza, uma vez que as posições destacadas dos dois países quando se considera apenas o PIB de cada um se altera completamente quando se considera o IDH. No último ranking divulgado pelo PNUD, a China ocupava o 79º lugar, enquanto a Índia se encontrava apenas no 132º lugar[1].

Já ao examinar as principais diferenças dos modelos adotados nos dois países, Zakaria e Friedman destacam o aspecto político. Enquanto a China mantém um regime autoritário com domínio absoluto do Partido Comunista, a Índia se sobressai como a maior democracia do mundo, com diversos partidos e razoável alternância no poder.

A força da China e da Índia na economia mundial reflete um processo que se iniciou na década de 1970, quando o Japão, poucos anos depois de ter sido arrasado na Segunda Guerra Mundial, emergiu como uma das mais poderosas economias do mundo, ameaçando a hegemonia norte-americana. Na década seguinte, o destaque ficou para os chamados tigres asiáticos, graças ao expressivo crescimento da Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura e Taiwan. A partir dos anos 1990, os holofotes se voltaram para a China, graças às seguidas taxas de crescimento da ordem de 10% ao ano resultantes das reformas implementadas por Deng Xiaoping a partir de 1978. Paralelamente ao crescimento desses países, testemunhamos também o bom desempenho da Indonésia, da Malásia e, em menor escala, Filipinas e Vietnã. A forte arrancada da Índia nos últimos anos significa, portanto, mais uma etapa desse processo de fortalecimento da Ásia na economia mundial.

 

Referências e indicações bibliográficas e webgráficas

DRÈZE, Jean e SEN, Amartya. Glória incerta: a Índia e suas contradições. Tradução de Ricardo Doninelli Mendes e Laila Coutinho. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

FRIEDMAN, Thomas. A raiz da crise de confiança entre EUA e China. O Estado de S. Paulo, 23 de abril de 2023. Disponível em https://www.estadao.com.br/internacional/eua-china-e-uma-crise-de-confianca-entre-as-superpotencias-leia-a-coluna-de-thomas-friedman/.

ÍNDIA passa a China e se torna o país mais populoso do mundo, confirma projeção. Disponível em https://www.estadao.com.br/internacional/india-passa-a-china-e-se-torna-o-pais-mais-populoso-do-mundo-confirma-projecao/.

MORO, Javier. O sári vermelho: a história real da mulher que desafiou a Índia por amor. Tradução de Sandra Martha Dolinski. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2009.

ZAKARIA, Fareed. A hora da Índia finalmente chegou. O Estado de S. Paulo, 29 de abril de 2023, p. A 15.

[1] A respeito do expressivo crescimento econômico da Índia não acompanhado pela melhora correspondente de seus indicadores sociais, recomendo a leitura de Glória incerta, de Drèze e Amartya Sen.