A tragédia e o princípio da subsidiariedade

“Ações que se limitam às respostas de emergência em situações de crise não são suficiente. Eventos como esse – cada vez mais comuns por causa das mudanças climáticas – não podem mais ser tratados como ‘imprevistos’.”

Marcio Astrini

(Secretário-executivo do Observatório do Clima)

Para Jacy Mendonça, ex-presidente do Instituto Liberal de São Paulo, os fundamentos do liberalismo podem ser assim sintetizados: o pluralismo e a democracia no plano político; a concorrência e o mercado livre no plano econômico; e o princípio da subsidiariedade no plano administrativo. De acordo com o referido princípio,  tudo que puder ser feito por uma entidade menor não deve ser feito por um organismo maior. Tudo o que puder ser feito pelos indivíduos, deve ser feito por eles; o que eles não puderem fazer, deve ser feito no município; o que ele não puder fazer, deve ser feito pelo estado. À União caberá fazer apenas aquilo que não puder ser feito nos âmbitos individual, municipal e estadual.

Em artigo publicado anos atrás no Jornal do Brasil, Ubiratan Iório, professor da UERJ, ilustrou o referido princípio da seguinte forma: “Se você tiver um problema com o seu vizinho de porta, o ideal é resolvê-lo sem recorrer ao síndico. Se a questão é no condomínio, o correto é levá-la ao síndico e não à administração regional de seu bairro. Se o problema for do bairro, recorra-se à administração e não à prefeitura. Caso seja da cidade, para que recorrer ao governador, se existe a figura do prefeito, que ganha para isso? Da mesma forma, se as dificuldades são em um estado, deve-se buscar o governador e não o presidente do país. Estas regras básicas, que são respeitadas em todas as sociedades razoavelmente organizadas, compõem o “Princípio da Subsidiariedade”, a pedra angular do federalismo, da limitação do poder do Estado e da liberdade individual“.

Lembrei-me com frequência deste princípio ao acompanhar a tragédia ocorrida em várias regiões do Rio Grande do Sul em razão das intensas e prolongadas chuvas que castigaram o estado gaúcho.

Felizmente, as heroicas iniciativas adotadas pelos voluntários das regiões atingidas impediram, de imediato, que a calamidade não atingisse proporções ainda maiores. Tais iniciativas foram em seguida acompanhadas pelas ações de populações de outros estados que se mobilizaram de diferentes formas para ajudar as regiões afetadas, quer resgatando pessoas que se encontravam ilhadas, quer contribuindo para abastecer os locais utilizados como abrigo das pessoas desalojadas, quer organizando grupos de arrecadação de água, alimentos, roupas, dinheiro e outros bens de primeira necessidade para serem encaminhados às cidades afetadas pelas enchentes.

Até as tão criticadas redes sociais deram uma contribuição decisiva no processo de mobilização. Valendo-se das vantagens da tecnologia e atuando em rede,  mostraram extraordinária capacidade de aglutinar esforços simultâneos, revelando uma agilidade essencial em momentos de angústia como os vividos pela população gaúcha.

Ao contrário do que acontece com as administrações municipais e estaduais, bem como ao presidente da República, tais ações são tomadas imediatamente, não dependendo de medidas administrativas que, por razões burocráticas, acabam sendo retardadas e chegando bem depois do que poderiam chegar. Sem contar as trapalhadas de gestores que não raras vezes tentam se aproveitar de situações como essa para aumentar sua popularidade, com claros objetivos eleitoreiros.

Assim, enquanto prefeitos e o governador do estado mostraram-se surpresos e perdidos de início diante do tamanho da tragédia, o presidente da República se preocupava em reunir os presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados para, em ato solene, assinar um Decreto Legislativo com vistas a dar celeridade para que as coisas atendam as necessidades do Rio Grande do Sul neste momento de calamidade e ministros de diferentes pastas evidenciassem despreparo para enfrentar imprevistos dessa natureza, com declarações inoportunas quanto à época ideal para liberação de recursos, a defesa civil das cidades atingidas é que agiram, ainda que de forma desorganizada e sem coordenação, para minimizar o sofrimento de milhares de pessoas.

Espero que o trágico exemplo do Rio Grande do Sul sirva, pelo menos, para algumas lições: 1ª) A solidariedade humana e as iniciativas individuais são insubstituíveis em situações emergenciais; 2ª) É preciso estar atento e, dentro do possível, se preparar previamente para situações como a ocorrida no Rio Grande do Sul, que tendem a ser mais frequentes em função dos efeitos das mudanças climáticas; 3ª) As administrações federal, estaduais e municipais devem se articular melhor para agir de maneira mais efetiva nessas situações, deixando de lado questões político-partidárias ou ideológicas; 4ª) É necessária maior coordenação entre a defesa civil das diferentes instâncias; 5ª) Urge a criação de mecanismos extraordinários que viabilizem a agilização da liberação de recursos humanos, financeiros e materiais diante de tragédias de grande magnitude.