O chamado da tribo

Grandes pensadores para o nosso tempo

“O liberalismo é inseparável do sistema democrático como regime civil de poderes independentes, liberdades públicas, pluralismo político, direitos humanos garantidos, eleições, e mercado livre como mecanismo para alocação dos recursos e criação de riqueza.”

Mario Vargas Llosa

 No segundo semestre de 2011, escrevi um artigo para a revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP intitulado Peixe na água: trajetória de uma conversão. Tratava-se de um pequeno gesto para homenagear o escritor peruano que, no ano anterior, havia sido agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, contrariando uma tendência ideológica da Academia Sueca, que nos anos anteriores vinha contemplando autores da esquerda “multicultural”.

Para escrever o referido artigo, baseei-me na leitura de grande parte das obras de Vargas Llosa e, em especial de Peixe na água, um livro de memórias que começou a ser escrito logo depois da derrota nas eleições para a presidência do Peru de junho de 1990, nas quais foi derrotado por Alberto Fujimori.

Vale destacar, entre tantas coisas interessantes contidas nesse livro, uma conversa de Vargas Llosa com sua esposa Patrícia. Nessa conversa, ele argumenta que entrou na disputa política por uma “obrigação moral”, sendo contestado por ela, que diz que ele entrou na eleição porque queria viver o seu “romance total”.

Vargas Llosa acabou concordando que suas memórias podiam ser vistas como um “romance total” – a tentativa de escrever o meu romance da vida real. Esse “romance total” conta a história do Peru nos últimos cinquenta anos, como explicou a Martim Vasques da Cunha, que o entrevistou em uma visita ao Brasil poucos dias depois do anúncio de que ele havia sido agraciado com o Prêmio Nobel:

Concordo plenamente, as minhas memórias podem ser lidas dessa forma, sem dúvida. Mas tudo isso que vivi deve ser entendido da seguinte maneira: todas as ideias que defendi nessa eleição eram muito impopulares. Agora, são extremamente populares e aceitas por todos. É curioso como muda a cultura política de uma época, não?

Mais de 25 anos depois de Peixe na água, Vargas Llosa nos brinda com outo livro de memórias, desta vez sobre as influências intelectuais que o levaram a abandonar as ideias socialistas que havia abraçado na juventude, inspirado fortemente por Jean-Paul Sartre, para se transformar num dos maiores defensores de uma “tradição de pensamento que favorece o indivíduo frente à tribo, à nação, à classe ou ao partido, e que defende a liberdade de expressão como um valor fundamental para o exercício da democracia”.

O chamado da tribo, que tem por subtítulo Grandes pensadores para o nosso tempo, é a autobiografia intelectual de Mario Vargas Llosa, sem qualquer favor, um dos maiores escritores de nosso tempo.

Logo no capítulo inicial, em que apresenta uma justificativa para o livro, Vargas Llosa explica as razões de seu desencanto e ruptura com o socialismo.

Minha ruptura com Cuba e, em certo sentido, com o socialismo veio em decorrência do então famosíssimo caso Padilla. O poeta Heberto Padilla, ativo participante na Revolução Cubana – chegou a ser vice-ministro de Comércio Exterior –, começou a fazer algumas críticas à política cultural do regime em 1970. Primeiro foi atacado violentamente pela imprensa oficial e depois preso, com a acusação disparatada de ser agente da CIA. Indignados, eu e quatro amigos que o conheciam – Juan e Luis Goytisolo, Hans Magnus Enzensberger e José Maria Castellet – redigimos no meu apartamento em Barcelona uma carta de protesto à qual aderiram muitos escritores no mundo todo, como Sartre, Simone de Beauvoir, Susan Sontag, Alberto Moravia, Carlos Fuentes, protestando contra aquele abuso. Fidel Castro respondeu pessoalmente, acusando-nos de estar a serviço do imperialismo e afirmando que não voltaríamos a pisar em Cuba por “tempo indefinido e infinito” (quer dizer, toda a eternidade).

Pouco depois, critica o “espírito da tribo” frequentemente utilizado em seus discursos por líderes carismáticos como Hitler, Mussolini, Perón ou Fidel Castro.

O “espírito tribal”, fonte do nacionalismo, foi o causador, junto com o fanatismo religioso, das maiores matanças na história da humanidade. Nos países civilizados, como a Grã-Bretanha, o chamado da tribo se manifestava principalmente nos grandes espetáculos, jogos de futebol ou concertos ao ar livre dos Beatles e dos Rolling Stones nos anos 1960, nos quais o indivíduo desaparecia engolido pela massa, uma escapatória momentânea, saudável e catártica das servidões diárias do cidadão.

Nos capítulos seguintes, ele aborda os sete pensadores que foram fundamentais para sua conversão ao liberalismo, apresentando pequenos dados biográficos de cada um deles e referindo-se – como excepcional crítico literário que é – às suas obras mais relevantes.

Seguem-se, então, pela ordem: Adam Smith (1723-90) e “a insólita revelação de que o homem comum, trabalhando para materializar seus próprios desejos e sonhos egoístas, contribuía para o bem-estar de todos”; José Ortega y Gasset (1883-1955) e o alerta de um pensador liberal que vê “na hegemonia crescente do coletivismo e no desaparecimento do indivíduo dentro do gregarismo um retrocesso histórico e uma ameaça muito grave para a civilização democrática”; Friedrich August von Hayek (1899-1992) e a convicção de que “a liberdade é inseparável de uma certa desigualdade: distribuir a pobreza não traz riqueza a ninguém, só contribui para universalizar a pobreza”; Sir Karl Popper (1902-94) e a sustentação de que “as verdades científicas, sempre impugnáveis, só são verdades enquanto resistem à prova da ‘falseabilidade’, ou seja, enquanto não puderem ser objetivamente refutadas” ; Raymond Aron (1905-83) e a incansável pregação “da democracia liberal contra as ditaduras, da tolerância contra os dogmas, do capitalismo contra o socialismo e do pragmatismo contra a utopia”; Sir Isaiah Berlin (1907-97) e a certeza de que “a responsabilidade, a liberdade de escolha, a tolerância e o pluralismo são, mais que imperativos morais, necessidades práticas para a sobrevivência dos homens”; e Jean-François Revel (1924-2006) e a constatação de que “a grande desgraça do século XX é ter sido aquele no qual o ideal da liberdade foi posto a serviço da tirania, o ideal da igualdade a serviço dos privilégios e todas as aspirações, todas as forças reunidas originalmente sob o vocábulo ‘esquerda’ foram embridadas a serviço do empobrecimento e da servidão”.

A leitura, como não poderia deixar de ser, é agradabilíssima, oferecendo inúmeras oportunidades de reflexão a respeito dos aspectos salientados por Vargas Llosa no exame da produção intelectual de cada um desses sete autores.

Afora essas reflexões, me pus a pensar sobre os autores que tiveram influência na minha própria opção pelo liberalismo. Concluí que além de Adam Smith, Friedrich Hayek, Karl Popper e Ortega y Gasset, mencionados em O chamado da tribo, minha lista incluiria Alexis de Tocqueville, Roberto Campos, José Guilherme Merquior e o próprio Mario Vargas Llosa.

Referências bibliográficas e webgráficas

CUNHA, Martim Vasques da. Elogio da disciplina. Em voo com Mario Vargas Llosa. Dicta & Contradicta. Dezembro de 2010, número 06, pp. 24-46.

MACHADO, Luiz Alberto. Peixe na água: trajetória de uma conversão. Facom – Revista da Faculdade de Comunicação e Marketing da FAAP, Nº 24, 2º semestre de 2011, pp. 32-39.

VARGAS LLOSA, Mario. Peixe na água: Memórias. Tradução de Heloisa John. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.

_______________ O chamado da tribo. Tradução de Paulina Wacht e Ari Roitman. Rio de Janeiro: Objetiva, 2019.