Qualidade do Estado e desenvolvimento econômico e social

 

Eiiti Sato*

 

O pensador Mancur Olson (1932-1998) trouxe para a reflexão sobre a ordem política muitos aspectos importantes mas, provavelmente, sua contribuição mais notável foi perceber que a qualidade do Estado é um ingrediente essencial – embora não suficiente – para explicar por que algumas nações prosperam, enquanto outras têm fracassado e não conseguem se desenvolver econômica e socialmente. Há nações como o Brasil, que possui território e recursos naturais em abundância e, no entanto, seu PIB per capita é de apenas US$ 8.900, enquanto o PIB per capita mundial é de US$ 12.600; e há países como Singapura, que tem um território muito pequeno e praticamente não possui qualquer recurso natural e, apesar disso, seu PIB per capita é um dos maiores do mundo, atingindo US$ 82.800.[1]

A qualidade do Estado

O termo “qualidade do Estado” pode significar muitas coisas. Em princípio, pode-se entender como de elevada qualidade aquele Estado que não apresenta vícios como a corrupção e o mau uso do poder, o que continua sendo uma conceituação muito vaga. Olson sugere uma direção bastante objetiva para conceituar a qualidade de um Estado. Para ele, a primeira obrigação de qualquer Estado é deixar claro para a sua população quais virtudes devem ser valorizadas e recompensadas, e que vícios de comportamento devem ser evitados e até punidos com severidade. Um Estado que emite sinais ambíguos sobre essa questão está fadado a perder a confiança em suas instituições com todas as consequências em termos de deterioração da ordem política, econômica e social.

Na história não há registro de sociedade que tenha conseguido prosperar e se destacar sem um ambiente de ordem. É curioso observar esse fato nos afrescos pintados por Ambrogio Lorenzetti (c. 1285-1348) no Palazzo Pubblico de Siena. No afresco, pintado por volta de 1346, Alegoria do Bom Governo há um ambiente de prosperidade e de alegria, pois há ordem enquanto, na outra parede, Lorenzetti pintou a Alegoria do Mau Governo, onde predomina a tirania e a desordem. Nesse ambiente, não há arte e nem negócios, e o povo vive na miséria e na tristeza.

A ordem e o cumprimento das leis no Brasil

É lamentável ver que no Brasil a opção tem sido pela desordem. O Judiciário, que deveria ser o guardião da ordem e das leis, tem contribuído de forma substancial para a opção pela desordem. Tem preferido deixar de lado seu papel de guardião das leis e da ordem – um papel que é insubstituível – para dedicar-se à seara da política. Nas instâncias mais básicas, os magistrados ocupam-se apenas de soltar criminosos de todos os matizes que, mesmo presos em flagrante, são soltos imediatamente, por vezes mediante o pagamento de uma fiança cujo valor é ridículo. Nas “audiências de custodia” das Cortes americanas, de quem a justiça brasileira copiou essa instituição, o arbitramento da fiança pelo juiz de primeira instância é feito apenas quando o caso gera um processo judicial, isto é, uma vez caracterizada a culpa por algum delito (roubo, estupro etc.), o réu começa a cumprir pena imediatamente, mas como o réu ainda pode recorrer da pena arbitrada por esse juiz, esse réu pode usar do recurso da fiança, que é arbitrada de tal forma que o valor realmente “faça falta” ao réu, inclusive para que esse réu seja o primeiro interessado em acelerar ao máximo o andamento do processo judicial. Por essa razão, há casos de fianças milionárias para réus milionários. Mesmo para acusados “classe média” dificilmente os valores das fianças arbitrados são ridículos como aquelas praticadas no Brasil. Além disso, não existe a justificativa de “baixo teor ofensivo” de um delito. Os presos, apanhados mais de uma vez pelo mesmo delito perde o direito à fiança e simplesmente passam a cumprir pena.

É lamentável ver os índices de criminalidade no Brasil diante das cifras do mundo das grandes democracias modernas, que é onde a grande maioria de brasileiros gostaria de ver o Brasil ser incluído. Apenas no DF já foram registrados em 2023 um total de 26 feminicídios, isto é, 9 a mais do que em todo o ano de 2022. A publicação World Atlas de 2023 traz a lista dos mais de 200 países do mundo, classificados pelo número de homicídios por 100 mil habitantes e, nessa lista, o Brasil é o 13º país mais violento do mundo (30,5 homicídios/100 mil hab. em 2020). Em todas as nações que consideramos como grandes democracias modernas os índices ficam em torno de 1,0 homicídio por grupo de 100 mil habitantes. Os EUA constituem a exceção mais notável, com um índice de 5,3 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes. Muitos analistas entendem que essa disparidade entre os índices de homicídios nos EUA em relação a outras grandes democracias modernas tem a ver com a tradição da maioria dos Estados americanos em priorizar o princípio da liberdade individual quanto ao porte de armas, não estabelecendo formalmente restrições ao uso de armas, como fazem as demais grandes democracias.

Estado, indivíduo e sociedade

A velha discussão sobre os dilemas entre uma moral para o Estado e outra para o indivíduo na realidade tal dilema não existe. Para o Estado o que é moral está nas leis, que devem ser cumpridas a despeito de que, por vezes, possa até haver uma sensação de que uma lei vigente possa parecer injusta. Mas quando essa situação ocorre, qualquer eventual mudança nas leis ocorre por meio dos mecanismos institucionais, jamais por leniência ou por simples descumprimento das leis em vigor, valendo a máxima “melhor uma lei ruim do que a deterioração da ordem”.

Pode haver muitas explicações para o surgimento das organizações criminosas que atuam no tráfico de entorpecentes ou que roubam cargas, telefones celulares e residências, etc. Também pode haver muitas explicações para a formação de “cracolândias” nas grandes cidades brasileiras e também interpretações bastante elaboradas para o crescente envolvimento de menores e de mulheres nas organizações criminosas mas, com toda certeza, qualquer que seja a interpretação, a impunidade apenas ajuda a agravar a situação.

Entre as consequências da deterioração da ordem apontadas por Olson está a elevação dos custos de transação na sociedade. Um país que falha em fazer cumprir suas próprias leis acaba convivendo não apenas com os riscos do aumento da criminalidade, convive também com a insegurança jurídica, que é muito ruim para os negócios, implicando também em custos adicionais que, ao final, representam dificuldades, que fomentam a inflação e comprometem a competitividade das organizações empresariais da nação.

É importante notar que o fenômeno do descumprimento das leis não ocorre de forma fragmentada, isto é, não há casos em que as leis são descumpridas apenas nos negócios ou apenas em qualquer outro campo do Direito. A impunidade também não beneficia apenas os pequenos ou somente os grandes transgressores. A impunidade mais se parece com um câncer, que pode ter início em algum órgão do corpo humano mas, à medida que avança, vai contaminando e atacando a saúde do corpo humano como um todo. Nos fins da década de 1970 Walter Wriston (CEO do grupo Citicorp), referindo-se aos países endividados, notabilizou-se com a frase “países não vão à falência”. De fato, diferentemente das empresas, países não vão à falência, mesmo com elevados índices de criminalidade, mas também é muito triste pensar que um país como o Brasil possa se contentar com índices de homicídios e de deterioração social tão elevados e, ao mesmo tempo, com índices tão baixos de crescimento econômico e de qualidade de desenvolvimento social.

 

[1] Os dados são do Banco Mundial e referem-se ao ano de 2022. O território de Singapura ocupa uma área de 716,1 km2.

 

 

 

 

 

*Eiiti Sato, Dr. é formado em Economia (FAAP, S. Paulo); mestre em Relações Internacionais (Universidade de Cambridge, U.K.), e doutor em Sociologia (USP). É professor do Instituto de Relações Internacionais da UnB desde 1983, dedicando-se ao ensino e à reflexão sobre filosofia, teoria e história das Relações Internacionais. Foi diretor do Instituto de Relações Internacionais da UnB (2006-2014), e foi um dos fundadores da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI), tendo sido seu primeiro presidente (2005-2007).