Leitura e repertório

 

“Leitura é a chave para se ter um universo de ideias e uma tempestade de palavras.”

Pedro Bom Jesus

 

Entre outras coisas, aproveitei o fim de semana para ler o relatório de atividades de 2022 do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, um think tank que completou 35 anos no ano passado, coisa rara para instituições dessa natureza no Brasil.

Tendo acompanhado a trajetória do referido instituto desde sua criação, pude testemunhar o intenso trabalho desenvolvido em projetos de diferente natureza, tendo sempre por preocupação central o aperfeiçoamento das instituições brasileiras.

Ao longo dessa trajetória, o Instituto Braudel foi obrigado a superar uma série de adversidades, mas jamais deixou de se preocupar com a qualidade de suas ações, nas quais estiveram envolvidos personagens de destaque dos cenários político, econômico, social, cultural e educacional tanto do Brasil como do exterior.

Nos últimos anos, o projeto de maior visibilidade do Instituto é o Programa Círculos de Leitura, não sendo por outra razão que boa parte do relatório a ele se refere. As atividades do Programa são realizadas por meio de encontros com grupos de até 15 alunos de escolas da rede pública para ler, discutir e produzir textos a partir de obras clássicas da literatura brasileira e universal. Dessa forma, o Programa busca apoiar o jovem no desenvolvimento de sua identidade, cidadania e relacionamento com a comunidade. A leitura e debate em grupo criam um espaço para adolescentes que querem compartilhar experiências e ampliar o universo de conhecimento por meio das palavras e do vínculo com o outro. Durante a prática dos Círculos de Leitura, emergem os “multiplicadores” – jovens que se destacam pelo talento, dedicação, ambição e potencial de liderança. No método desenvolvido pela psicanalista Catalina Pagés, idealizadora do programa, cabe ao multiplicador conduzir as práticas de leitura em que os estudantes se sentam em pequenas rodas e leem em voz alta, com pausas para reflexão em grupo.

Realizado, a princípio, em escolas da rede pública das cidades da Grande São Paulo, o Programa cresceu de forma impressionante, atingindo em 2022 os seguintes números: 58.200 alunos beneficiados; 144 municípios atingidos; 320 escolas parceiras; 1.347 alunos multiplicadores formados; 28.533 materiais distribuídos nas escolas; e 548 professores parceiros. Seguramente, esses números só não são maiores em razão dos exíguos recursos disponíveis e da salutar política do Instituto de não dar o passo maior do que as pernas, recusando inúmeros pedidos de escolas interessadas em fazer parte dos Círculos de Leitura.

E por que reconheço a enorme importância de um projeto como esse?

Porque em mais de 35 anos dedicados ao ensino de diversas disciplinas nos cursos de ciências econômicas, comunicação social, engenharia e tecnologia constatei o brutal prejuízo acarretado pela deficiência em leitura e por seu efeito multiplicador. Quem não lê satisfatoriamente, não consegue interpretar o enunciado de questões de qualquer outra disciplina, o que explica, seguramente, maus resultados em matemática, ciências, geografia ou história.

A décima edição do Anuário Brasileiro da Educação Básica, organizado pelo movimento Todos pela Educação, traz uma série de números que impressionam por sua magnitude. Analisando generalizadamente os números do Anuário, constata-se que os avanços são maiores no plano quantitativo do que no qualitativo.

Neste último plano, chama atenção o baixo aproveitamento em aspectos essenciais como leitura e matemática. Menos da metade dos alunos atingiu níveis de proficiência considerados adequados ao fim do terceiro ano do ensino fundamental em leitura e matemática. Em relação à escrita, um terço dos alunos apresentou níveis insuficientes. As deficiências são mais acentuadas nas crianças de nível socioeconômico mais baixo.

Na comparação com estudantes de países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) o desempenho médio dos brasileiros é inferior como mostram as tabelas 1 e 2. Os resultados do Brasil na edição de 2018 do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa, na sigla em inglês) apresentaram ligeira melhora, na comparação com os de 2015. No entanto, a variação se deu dentro da margem de erro e, por isso, o quadro é de estagnação. Assim, destaca-se, por exemplo, que menos de um terço dos estudantes brasileiros alcançam um nível de proficiência adequado (Nível 2) em matemática, enquanto a média dos países da OCDE é de 75,9%. O Pisa é uma avaliação trienal aplicada a estudantes de 15 anos em cerca de 80 países, a maior parte deles da própria OCDE. O Brasil participa como país convidado e a aplicação do exame, em 2018, envolveu 597 escolas públicas e privadas e 10.961 alunos brasileiros[1].

Tabela 1 – Desempenho comparado em matemática no Pisa

Ano Média OCDE Média Brasil
2009 492 386
2012 490 389
2015 487 377
2018 489 384
Fonte: Anuário Brasileiro da Educação Básica

Tabela 2 – Desempenho comparado em leitura no Pisa

Ano Média OCDE Média Brasil
2009 491 412
2012 493 407
2015 490 407
2018 487 413
Fonte: Anuário Brasileiro da Educação Básica

Porém, reconhecer a relevância da leitura para a formação individual e, por extensão, para o desenvolvimento de qualquer nação não é exclusividade brasileira ou de países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento. Michèle Petit, pesquisadora do Laboratório de Dinâmicas Sociais e Recomposição dos Espaços, do CNRS, da França, com profundo conhecimento de causa, dá grande ênfase à relevância da leitura na vida de qualquer sociedade, como se observa no trecho que se segue extraído do livro Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva.

O que está em jogo na leitura – sobretudo entre os jovens, para quem ler não é algo natural – não me parece se reduzir a uma questão “social”. Parece, a meu ver, aproximar-se da democratização profunda de uma sociedade.

Uma cidadania ativa – não devemos esquecer isso – não é algo que cai do céu, é algo que se constrói. A leitura pode contribuir em todos os aspectos que mencionei: acesso ao conhecimento, apropriação da língua, construção de si mesmo, extensão do horizonte de referência, desenvolvimento de novas formas de sociabilidade… e em outros que com certeza estou esquecendo. Por meio da difusão da leitura, cria-se um certo número de condições propícias para o exercício ativo da cidadania. Propícias, necessárias, mas não suficientes. Mais uma vez, não sejamos ingênuos. Se existe uma leitura que auxilia a simbolizar, a se mover, a sair do lugar e a se abrir para o mundo, existe também uma outra que só conduz aos prazeres da regressão. E se alguns textos nos transformam, há uma grande quantidade que, na melhor das hipóteses, apenas nos distraem.

Além dos benefícios citados por Michèle Petit, desenvolver a leitura contribui para que o jovem amplie o seu repertório, ou seja, o conjunto dos conhecimentos de que dispõe para enfrentar as vicissitudes do dia a dia, neutralizando, pelo menos em parte, deficiências adquiridas nos primeiros anos de vida. A ausência de repertório amplo não decorre apenas das mazelas do ensino básico ou – no caso das crianças que vivem num ambiente de extrema pobreza – da fome e da má nutrição. O problema começa bem antes. Como bem observa Clayton Christensen no livro Inovação na sala de aula: como a inovação disruptiva muda a forma de aprender, a falta de interação verbal na família compromete a evolução futura, impedindo que essas crianças possam concorrer com outras da mesma idade pelas oportunidades que a vida oferece.

Todd Risley e Betty Hart, dois dos principais pesquisadores sobre como a capacidade intelectual é determinada, observaram e registraram as interações verbais entre uma representativa amostragem de pais e seus filhos em casa, durante os primeiros dois anos e meio de vida.

Eles calcularam que, em média, os pais falam 1.500 palavras por hora com seus bebês. Pais “falantes”, com formação universitária, falaram em torno de 2.100 palavras por hora aos seus bebês, enquanto crianças no segmento considerado pelos pesquisadores de “famílias dependentes da previdência” ouviram seus pais falarem apenas 600 palavras por hora. Risley e Hart estimaram que aos 36 meses de idade, filhos de pais com formação universitária tenham ouvido os pais falarem 48 milhões de palavras para eles. Em contraste, filhos de famílias sem renda própria haviam ouvido apenas 13 milhões de palavras.

Não gostaria de encerrar esta série de reflexões sobre a importância da leitura para a construção de um amplo repertório sem mencionar algumas contradições provocadas pelos avanços tecnológicos e pela substituição de antigos por novos hábitos. Sem querer ser ingênuo a ponto de ignorar as vantagens trazidas pela internet, pela inteligência artificial e pela tecnologia da informação, é inegável que algumas facilidades por elas proporcionadas desestimulam a prática da leitura.

Luciano Pires, que abandonou uma bem-sucedida carreira de executivo de uma multinacional do setor automotivo para se transformar num produtor de conteúdo e influenciador digital, conta uma história em suas palestras que ilustram bem esse aspecto. Diz ele que em sua infância passada em Bauru, num determinado dia de todas as semanas, esperava ansiosamente a chegada do pai com um novo fascículo da Enciclopédia Conhecer. Ao recebê-lo, não perdia tempo. Punha-se a examinar atentamente aquela maravilha colorida repleta de figuras e informações. No fascículo com verbetes iniciados em “T” seu interesse especial era o Tiranossauro Rex. Só que, para chegar nele, era obrigado a passar por tanajura, por títulos de renda fixa, por Tijuana e por uma série de outros verbetes iniciados com aquela letra. Assim, mesmo que de forma inconsciente, ia acumulando informações que passavam a fazer parte do seu repertório. Atualmente, com os sites de busca como o Google, basta teclar a palavra ou expressão desejada e as respostas aparecem imediatamente. A mesma coisa ocorre, de certa maneira, com as séries disponibilizadas pelas plataformas de streaming, que levam muitas pessoas a “maratonarem”, assistindo em sequência a vários capítulos, utilizando um tempo que, até algum tempo atrás, era dedicado à leitura.

Como afirmei anteriormente, não se trata de brigar com as inovações e os avanços proporcionados pela ciência e pela tecnologia. Com tantas ferramentas tecnológicas dinâmicas e divertidas torna-se cada vez mais difícil encontrar um jovem com um livro nas mãos. Mesmo sabendo que a concorrência chega a ser desleal, ouso sugerir que crianças e jovens sejam estimulados a dispor ao menos de parte do seu tempo para cultivar o salutar hábito da leitura, construindo, assim, um repertório que lhes permitirá desenvolver o potencial criativo e agregar valor à sua competência individual.

 

Referências bibliográficas e webgráficas

CHRISTENSEN, Clayton M. Inovação na sala de aula: como a inovação disruptiva muda a forma de aprender. Tradução de Rodrigo Sardenberg. Porto Alegre: Bookman, 2012.

PAGÉS, Catalina; LAMAS, Maria Aparecida (Organizadoras). Círculos de leitura: a arte do encontro. São Paulo: Recriar Editorial, 2018.

PETIT, Michèle. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza.São Paulo: Editora 34, 2009. 

TODOS pela Educação (org.). Anuário Brasileiro da Educação Básica. Brasília: Moderna, 2021. Disponível em https://todospelaeducacao.org.br/wordpress/wp-content/uploads/2021/07/Anuario_21final.pdf.

[1] O fato de participarem estudantes tanto de escolas públicas como de privadas resulta, provavelmente, num desempenho melhor do que se fossem apenas estudantes de escolas públicas.