A Lei Kandir será extinta? Qual cuidado precisamos tomar?

Eduardo José Monteiro da Costa[1]

Desde 2010, quando fui presidente do Conselho Regional de Economia do Pará (CORECON-PA), venho publicamente levantando a bandeira sobre a necessidade de revertermos como sociedade as injustas perdas causadas pela Lei Complementar 87/1996, chamada correntemente de Lei Kandir.

A referida lei ampliou as contradições no federalismo fiscal brasileiro ao exonerar da cobrança do ICMS as exportações de bens primários e semielaborados sem normatizar mecanismos adequados de compensação aos estados exportadores pelas suas perdas de arrecadação. Ora, sendo o ICMS o principal imposto arrecadatório dos estados, a isenção de sua cobrança nas exportações, sem normatização de critérios de compensação – previstos originariamente no corpo da lei em seu dispositivo anexo, para serem regulamentadas por lei num prazo não superior a cinco anos –, trouxe prejuízos significativos para estados com economias fortemente exportadoras de commodities.

Em uma série de estudos e artigos publicados, atualizados no livro A Lei Kandir e a Derrocada do Federalismo Brasileiro, publicado em 2017 em parceria com outros dois coautores, apresentamos a contextualização histórica da lei, o sistema de compensação originariamente previsto, cinco hipóteses doutrinárias de inconstitucionalidade relativas à Lei, e as perdas de arrecadação acumuladas no período entre 1997 e 2016. Nesse período, os estados perderam 268 bilhões de reais, sendo os mais prejudicados: Minas Gerais (R$ 64,5 bilhões), Rio de Janeiro (R$ 60,7 bilhões), Pará (R$ 35,7 bilhões) e Mato Grosso (R$ 30,8).

A princípio, haveria duas formas de reverter a situação de perdas dos estados, uma por meio do retorno da cobrança do ICMS nas exportações de bens primários e semielaborados (diversas PEC foram apresentadas nesse sentido sem sucesso) ou por meio da regulamentação adequada das compensações pela perda de arrecadação dos estados. Esta segunda estratégia foi capitaneada pelo Pará em 2013 quando o estado entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 25/13 do art. 91 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, recebendo quinze adesões como Amicus Curiare: Bahia, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe.

A ADO 25/2013 foi julgada por unanimidade procedente pela Corte, nos termos do voto do Relator, Ministro Gilmar Mendes, no dia 30 de novembro de 2016. Em seu julgamento, a corte reconheceu a existência de uma situação de inconstitucionalidade e declarou a mora do Congresso Nacional, determinando que, após a publicação do julgamento, no prazo máximo de um ano seja aprovada pelo Congresso Nacional a Lei Complementar prevista no art. 91 do ADCT com intuito de estabelecer um regramento adequado de compensação. Ademais, determinou que se o Congresso Nacional permanecesse omisso, e não cumprisse o prazo, caberia ao TCU emitir uma nota técnica estabelecendo critérios de compensação aos estados.

Após alguns anos, e apesar de comissões terem sido criadas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, a determinação do STF não foi cumprida, permanecendo os estados com as suas perdas, recebendo apenas repasses acordados politicamente no orçamento da União da ordem de aproximadamente R$ 4 bilhões por ano, um montante bem inferior às perdas anuais estimadas em montante superior a R$ 25 bilhões por ano.

É possível estabelecer uma ilação de que a não regulamentação das compensações deixou de acontecer por não interessar ao governo federal, na medida em que o repasse anual de pelo menos R$ 25 bilhões para os estados ampliaria o déficit fiscal da União.

Isto posto, repentinamente fomos surpreendidos com notícias que circulam nos meios de comunicação sobre a possível extinção da Lei Kandir. Em Brasília, a Frente Parlamentar do Norte, Nordeste e Centro Oeste de senadores e governadores reuniu-se com o Presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e “pactuou” que dentro da discussão de construção de um novo pacto federativo, ou seja, no bojo do debate da Reforma Tributária, uma PEC será apresentada extinguindo a Lei Kandir. Se a informação está correta, trata-se de uma enorme reviravolta na condução recente do processo. A estratégia de resolução do problema deixaria de passar pela normatização de critérios de compensação aos estados pelas perdas de arrecadação e passaria a considerar a possibilidade de extinção da Lei Kandir, retornando a cobrança do ICMS nas exportações de bens primários e semielaborados.

Confesso que, sem entrar – ao menos neste artigo que se propõe a ser breve – no mérito desse debate, julgo que o retorno da tributação, ao menos nas exportações de minérios, socialmente justa. Contudo, algumas informações que circularam nas mídias precisam de maiores esclarecimentos, e algumas estratégias precisam ser analisadas com cautela.

É obvio que a solução que não passa pelo repasse de recursos aos governos estaduais como compensação pelas perdas de arrecadação interessa à União, sobretudo em momento de elevado déficit fiscal. Ao mesmo tempo os estados não podem continuar deixando de arrecadar ICMS em atividades primárias, como a mineral, que apenas deixam para os estados o ônus de mitigação de seus impactos sociais e ambientais, sem serem justamente compensados. Logo, num debate eminentemente sobre a ótica de repasse de recursos (não estou entrando no mérito do estímulo às exportações, que é outro debate), a extinção da lei beneficiaria, a princípio, a União e os estados. Contudo, o Presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) deixou uma pista de que a nova proposta a ser encaminhada irá franquear aos estados a liberdade para legislarem em assuntos de natureza fiscal e estabelecerem alíquotas de impostos. Esse ponto merece cuidado e um debate mais cauteloso. Durante os últimos vinte anos temos debatido os prejuízos advindos da “guerra fiscal” entre unidades federativas. Dar liberdade para os estados estabelecerem alíquotas de impostos sobre exportação pode inaugurar no Brasil uma nova era de guerra fiscal, que poderia trazer efeitos reversos.

[1] Doutor em Economia pela Unicamp e professor da UFPA. Correio eletrônico: ejmcosta@gmail.com