Lei de Abuso de Autoridade:

a institucionalização da corrupção no Brasil

Eduardo José Monteiro da Costa[1]

“Vive-se uma inversão de valores no surrealismo verde-amarelo: à detenção de corruptos e criminosos se sobrepõe, daqui em diante, a dos agentes da lei, como delegados, procuradores e juízes.”

Alex Fiúza de Mello

Em recente artigo, denominado de “Estado de Exceção”[2], o prof. Alex Fiúza de Mello afirma, logo em sua introdução que a Constituição de 1988 foi “rasgada”. Recomendo a sua leitura, principalmente por se constituir num “oásis” em meio à polarização que apequena as agendas prioritárias do País, transformando a política brasileira no “reino dos liliputianos”, conforme ensaio anterior[3].

Na tese apresentada, o Brasil está vivendo um “Estado de Exceção”. Conforme suas palavras:

A ditadura está sendo imposta por uma ação concertada entre agentes de “colarinho branco”, articulados em uma verdadeira “Central Única da Corrupção”, cujos tentáculos principais se localizam, particularmente, em dois poderes da República: o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal.

Conforme o artigo, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) estão em uma clara ação orquestrada subvertendo o Estado de Direito numa clara tentativa de impedir os avanços no combate à corrupção e desmobilizar a Operação Lava Jato. Fiuza de Melo cita vários exemplos, que pela importância, reproduzo integralmente:

A escalada autoritária – com temperos de escárnio e revanchismo – é portentosa: desmonte da Lava Jato (com a desqualificação de seus protagonistas, a exemplo do que ocorreu com a Operação “Mãos Limpas”, na Itália); tentativas sistemáticas de anulação do processo da condenação de Lula; fim da prisão em segunda instância (com revisão da hermenêutica atualmente em vigência); concessão desarrazoada de habeas corpus a notórios criminosos; decisões monocráticas em contraposição à jurisprudência vigente; cerceamento da mídia (como no caso da revista Crusoé), com ameaças compulsórias às redes sociais; impedimento, ao arrepio da lei, das investigações contra a lavagem de dinheiro e a sonegação fiscal pelo COAF e a Receita Federal; engavetamento monocrático e despudorado da CPI da Lava Toga e dos inúmeros e legítimos pedidos de impeachment de ministros do STF; afronta à ordem hierárquica do sistema judiciário, com supressão de instâncias na apreciação e julgamento de recursos (como ocorreu no impedimento da transferência de Lula para presídio comum); legitimação de informações hackeadas e manipuladas de forma criminosa, permitindo-se que uma invasão virtual ilícita produza efeitos jurídicos, num ataque frontal ao Direito Penal; campanha orquestrada da grande mídia contra um governo legitimamente eleito, alimentada por autoridades constituídas, etc.

Essa assombrosa lista apresentada é acrescida pela “Lei de Abuso de Autoridade”, alinhavada pelos deputados Renan Calheiros e Roberto Requião, e que foi aprovada em regime de urgência em plena madrugada pelo Congresso Nacional.

Em última instância a “Lei de Abuso de Autoridade”, ao alterar o ordenamento jurídico e criar entraves para o combate à corrupção no País, além de fornecer amparo legal para a intimidação de agentes públicos no exercício de suas funções, traz como efeito resultante a institucionalização da corrupção e da impunidade dos “ladrões de colarinho branco”. O combate à corrupção no Brasil, como bem afirma o articulista, paulatinamente cede espaço para o combate aos que combatem a corrupção.

O momento atual, ao lado da leitura recomendada, estabelece uma importante e necessária ponte com o trabalho do economista norte-americano Douglass North, que, em 1993, foi laureado com o Prêmio Nobel de Economia justamente pelas suas pesquisas no campo da relação entre as instituições e o desenvolvimento das nações.

O ponto de partida de seu modelo é o axioma de que as instituições e a estrutura produtiva herdada por meio de processos históricos singulares geram dinâmicas socioeconômicas diversificadas entre as nações. Isto significa que o desenvolvimento econômico é um fenômeno eminentemente institucional, resultante de complexas interações entre forças econômicas, culturais e políticas da qual fazem parte distintos arranjos institucionais, que conferem diferenças nas trajetórias de desenvolvimento, bem como na forma de organização das diversas organizações da sociedade. Nesse sentido, o sucesso ou o fracasso das nações decorrem de sua formação histórica e da forma como as suas instituições foram criadas e/ou evoluíram.

Em suma, quando North formula a questão central de sua pesquisa – Por que algumas nações adentram em um caminho de prosperidade enquanto outras permanecem na pobreza e na miséria? –, ele encontra a resposta nas instituições e nas organizações que as sociedades construíram ao longo de sua história.

As instituições são apresentadas como sendo as “regras do jogo” (normas) socialmente construídas, gozando de aceitação geral pelos membros de um grupo social, que impõem restrições formais e/ou informais e que moldam o processo de interação entre os agentes, ao mesmo tempo em que estruturam incentivos na troca humana, sejam estes de ordem política, econômica ou social. Ao fazerem isso as instituições reduzem a incerteza na medida em que conferem uma estrutura previsível de ação por meio da coordenação das expectativas divergentes, criando padrões de comportamento duráveis e rotineiros que estabelecem limites para o conjunto de escolhas dos agentes.

As instituições reduzem – juntamente com a tecnologia empregada – os custos de transação e transformação, bem como o de acesso às informações, envolvidos na atividade humana. Porém, em que pese o principal papel das instituições seja o de reduzir a incerteza, estabelecendo uma estrutura estável para a interação humana, estas não são necessariamente socialmente eficientes.

A compreensão das trajetórias de desenvolvimento das nações depende da compreensão de sua matriz institucional e, para isso, torna-se necessária a análise da conformação de regras e normas, sejam estas formais e/ou informais, que a compõem e formam uma rede interligada que, sob variadas combinações, moldam o conjunto de escolhas dos agentes em múltiplos contextos, bem como das instituições que garantem a sua aplicação (enforcement). Essa hipótese leva ao corolário de que, de um lado, o subdesenvolvimento é resultado de instituições socialmente ineficientes e, de outro, somente com uma mudança institucional os países subdesenvolvidos podem romper com a sua trajetória de subdesenvolvimento.

De posse desse insight podemos inferir que os acontecimentos recentes no Brasil, ao invés de propiciarem o rompimento de nossa trajetória de subdesenvolvimento, apenas reforçam esse caminho. Culturalmente, estamos embeddedness numa sociedade que continua a tratar carinhosamente transgressão como “jeitinho brasileiro” e que tem as práticas do personalismo e do patrimonialismo difundidas amplamente em todos os espectros sociais. É a sociedade que vê o uso privado de recursos públicos sem escandalizar-se, que aceita passivamente a corrupção e que elege e reelege políticos com práticas nada republicanas. É a sociedade que coloca os projetos partidários acima dos interesses da nação. É a sociedade que flerta com a corrupção desde que ela aconteça para beneficiar os seus ou o seu partido. É a sociedade que passa a perseguir quem combate a corrupção desde que isso reforce a estratégia eleitoral de seu grupo político. É a sociedade que escolhe políticos como quem escolhe time de futebol, fechando os olhos para os seus erros, “odiando” quem pensa diferente. É a sociedade que perdeu a capacidade de debater o mérito dos projetos, estes são aceitos ou rejeitados sem debate, dependendo de quem está propondo, e não de seu conteúdo. É a sociedade na qual os políticos mudam de opinião e de lado como quem troca de camisa, colocando os seus mandados à venda para quem der mais, conforme a conveniência do momento. É a sociedade que perpetua uma democracia sem república, reforçando o mecanismo da corrupção desmascarado pela Operação Lava Jato. É a sociedade que critica a corrupção, mas sistematicamente elege e reelege políticos que compram votos nas eleições…

A “Lei de Abuso de Autoridade” apenas veio no Brasil reforçar a tese apresentada por Douglass North de que as instituições importam. E o problema do subdesenvolvimento brasileiro não é do “imperialismo”, do “capitalismo”, ou de qualquer outro “ismo” que alguns idiot savant adoram reproduzir para reforçar o projeto de poder sem nação de seus partidos. Mas, é antes de tudo, cultural, expresso em nossas instituições!

[1] Doutor em Economia pela Unicamp e professor da UFPA. Correio eletrônico: ejmcosta@gmail.com

[2] Ver: https://www.zoonpolitikon.com.br/2019/08/18/estado-de-excecao/. Acesso em 19 de agosto de 2019.

[3] Ver: https://www.facebook.com/notes/professor-eduardo-costa/o-momento-pol%C3%ADtico-atual-brasil-o-reino-dos-lileputeanos/1592069350935904/