Brasil e Argentina em trajetórias diferente

Pirâmides e losangos

“A antiga pirâmide social virou um losango, diminuiu a base e
aumentou a classe média e culminou com grande diminuição da
desigualdade social.

Renato Meirelles

Estou escrevendo este artigo às 23 horas do dia 11 de julho. Portanto, às vésperas de um fim de semana futebolístico em que as expectativas de brasileiros e argentinos são diametralmente opostas. Enquanto os brasileiros aguardam a melancólica disputa do terceiro lugar entre as seleções do Brasil e da Holanda, os argentinos, que literalmente invadiram o Rio de Janeiro, se se preparam euforicamente para a disputa do título mundial da Copa do Mundo de 2014, no consagrado palco do Maracanã, em que estarão frente a frente as seleções da Argentina e da Alemanha.

Numa Copa marcada pelo equilíbrio, ao longo da qual as seleções que se encontram na final tiveram enormes dificuldades para superar alguns de seus adversários, a conquista do direito de chegar à almejada decisão ocorreu de forma bastante distinta. Enquanto a seleção alemã aplicou um verdadeiro “chocolate” na seleção brasileira, vencendo por humilhantes 7 a 1 a seleção argentina, depois de uma partida sonolenta e de nível técnico medíocre, venceu a seleção holandesa na disputa dos pênaltis, após 120 minutos de placar em branco.

Dificilmente seria possível imaginar um quadro tão perverso para um povo apaixonado por futebol, residente num país que é – ou, pelo menos era – conhecido como o país do futebol, recordista em títulos mundiais e que deu ao mundo o maior futebolista de todos os tempos, considerado o atleta do século XX, o inigualável Pelé – para desespero dos argentinos.

Diante dessa situação, não há como deixar de reconhecer que a euforia “de los Hermanos” (pelo menos antes da final) contrasta flagrantemente com a tristeza dos brasileiros, ainda incapazes de assimilar o desastre ocorrido na semifinal contra a Alemanha.

Se, porém, deslocarmos o foco da análise para a situação socioeconômica dos dois países, constataremos uma situação totalmente inversa.

A Argentina, que até meados do século XX era o país mais desenvolvido da América Latina, com indicadores socioeconômicos superiores aos de diversos países europeus, encontra-se numa situação lastimável, com acentuada queda do padrão médio de vida, com taxas elevadas de inflação, encolhimento da renda e uma classe média que diminui permanentemente, obrigada a conviver com níveis de consumo cada vez mais reduzidos.

Em meio a uma tentativa de negociação com detentores de bônus que deixou a Argentina à beira do segundo calote da história do país em 13 anos, vale a pena relembrar a trajetória percorrida pelo antigo gigante sul-americano nos últimos 40 anos:

Desde 1974, a Argentina padeceu seis períodos de crises econômicas. De lá para cá, o país foi governado por 19 presidentes diferentes, entre militares, civis (incluindo os provisórios). Nessas quatro décadas, passaram pela pasta da Economia 33 ministros, enquanto que o Banco central teve 33 presidentes, Os diversos políticos que passaram pela cadeira presidencial implementaram estatizações de empresas, privatizações e reestatizações. Além disso, aplicaram confiscos bancários e calotes.

Em decorrência disso, a base da pirâmide social argentina não para de crescer, em grande parte por conta da queda do padrão de vida de significativo número de famílias que são vitimadas por sucessivos governos inconsequentes e corruptos, que não conseguem andar com as próprias pernas e que gastam muito mais do que arrecadam, não hesitando em lançar mão de práticas condenáveis como manipulação de dados estatísticos e lançamentos contábeis fraudulentos.

Enquanto isso, o Brasil, que também se encontra longe de uma situação econômica confortável, convivendo com taxas de crescimento pífias, com problemas fiscais e cambiais recorrentes e com uma inflação que se mantém insistentemente próxima do teto da meta fixada pelo governo (em torno de 6,5%, o que é muito para os padrões internacionais), apresenta um cenário socioeconômico muito mais favorável, graças às conquistas iniciadas no início da década de 1990, com a abertura da economia e a conquista da estabilidade, afinal obtida com o Plano Real.

Essas conquistas favoreceram a consolidação da democracia, o fortalecimento das instituições e um robusto crescimento do padrão de vida de parcela considerável da população, que deixou de viver na pobreza – ou na miséria – para passar a conviver com níveis de consumo jamais imaginados, levando a uma mudança que pode ser sintetizada geometricamente: a pirâmide deu lugar a um losango.

Não sei se serve de consolo.

Provavelmente não, no país do futebol.

Mas não consigo deixar de fechar este artigo lembrando de uma frase do colega e amigo Roberto Macedo: “Enquanto a Argentina sonha com um passado que não volta, o Brasil sonha com um futuro que não chega”.

Iscas para ir mais fundo no assunto
Referências e indicações bibliográficas

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LICITRA, Josefina. O povoado dos Kirchner. Piauí, 7 de abril de 2013.

REVISTA de Economia & Relações Internacionais. Edição especial com os textos das duas primeiras edições do Fórum Permanente de Diálogo Argentino-Brasileiro organizado pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) e pelo Consejo Argentino para las Relaciones Internacionales (CARI). São Paulo, FAAP, volume 5, edição especial, 2006.

SALOMÃO, Alexa e TEIXEIRA, Daniel. Inflação argentina cria nova classe média às avessas. O Estado de S.Paulo, 6 de julho de 2014, pp. B 12-13.

SEM KICILLOF, argentinos voltam a NY. O Estado de S. Paulo, 11 de julho de 2014, p. B 7. Mais um tango argentino? Cristina Kirchner assume a presidência

Referências e indicações webgráficas

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_______________ Argentina em seis fotogramas – Ladeira abaixo. Disponível em http://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-intelectuais/economicas/argentina-em-seis-fotogramas.

REBOSSIO, Alejandro. Glossário para entender (um pouco) a política argentina. Infolatam. Buenos Aires, 22 de abril de 2013. Disponível em http://www.infolatam.com.br/2013/05/03/glossario-para-entender-um-pouco-a-politica argentina

SCIBONA, Néstor O.Cristina y Dilma, en la misma ruta. La Nación, 15 de junio de 2014. Disponível em http://www.lanacion.com.ar/1701318-cristina-y-dilma-en-la-misma-ruta.