A garota que não se calou

O título deste artigo é o mesmo de um livro publicado no Brasil em 2021, cuja história se passa na Nigéria, país de nascimento da autora Abi Daré, que mora há dezoito anos no Reino Unido, onde estudou direito na Universidade de Wolverhampton e fez mestrado em escrita criativa na Universidade de Birkbeck, em Londres.

Ganhador do prêmio The Bath Novel para manuscritos inéditos em 2018 e finalista do The Literary Consultancy Pen Factor no mesmo ano, A garota que não se calou trata da história de Adunni, uma menina que nasceu e cresceu em uma aldeia rural na Nigéria e que alimenta o desejo de estudar para poder encontrar sua voz e falar por si mesma.

Ao receber a indicação para ler o livro, não pude evitar uma associação com Eu sou Malala, um best seller que também tem por base a superação de diversos obstáculos para levar a cabo a vontade de estudar. São histórias ocorridas em lugares diferentes, a de Malala no Paquistão, país asiático dominado pelos talibãs, a de Adunni na Nigéria, país africano onde ainda prevalece em muitas regiões um patriarcado tóxico, ambas sobre meninas que lutam pelo direito de aprender.

Entre as inúmeras razões que fizeram com que A garota que não se calou passasse a figurar imediatamente num lugar de destaque entre os livros que mais me impactaram está o fato de permitir, sendo um livro de ficção, conhecer de perto a realidade de um país relevante, sobre o qual pouco se comenta no Brasil.

A esse respeito, vale a pena reproduzir uma citação contida no Prólogo (p. 7), extraída da 5ª edição (2014) de O livro de fatos da Nigéria: do passado ao presente[1]:

A Nigéria fica na África Ocidental. Com uma população de pouco menos de 180 milhões de pessoas, é o sétimo país mais populoso do planeta, o que significa que um em cada sete africanos é nigeriano. Sexto maior exportador de petróleo bruto do mundo, com um PIB de 568,5 bilhões de dólares, a Nigéria é o país mais rico da África. Infelizmente, mais de 100 milhões de nigerianos vivem na pobreza, sobrevivendo com menos de 1 dólar por dia[2].

Outras informações relevantes a respeito da cultura, da política, das crenças e tradições, das práticas e dos hábitos adotados na Nigéria são apresentadas como fatos nas epígrafes de alguns dos 56 capítulos do livro, contribuindo para uma melhor compreensão do país. Exemplos:

Sobre a cultura: “Com mais de 250 grupos étnicos, a Nigéria tem uma grande variedade de alimentos. Os mais populares incluem arroz jollof, espeto de carne grelhada e apimentada, chamada suya, e akara, bolinhos de feijão-fradinho que são uma iguaria” (Capítulo 29, p. 177); “Existem mais de 50 milhões de usuários de internet na Nigéria. A previsão é de que, até o ano de 2018, mais de 80 milhões de nigerianos estejam usando a internet, colocando o país entre os quinze maiores usuários do mundo[3]” (Capítulo 33, p. 202).

Sobre a economia: “A indústria cinematográfica da Nigéria se chama Nollywood. Com mais de cinquenta filmes produzidos semanalmente, a indústria vale cerca de 5 bilhões de dólares e é a segunda maior do mundo, atrás apenas de Bollywood, da Índia” (Capítulo 31, p. 192).

Sobre a política: “Os senadores nigerianos estão entre os legisladores mais bem pagos do mundo. Um senador ganha cerca de 240 milhões de nairas (1,7 milhão de dólares) por ano entre salário e benefícios” (Capítulo 36, p. 220); “Muhammadu Buhari [citado diversas vezes ao longo do livro] foi chefe de Estado da Nigéria de 1983 a 1985 [após um golpe militar contra Shehu Shagari][4]. Ele promulgou a Guerra contra a Indisciplina, uma lei lembrada por abusos de direitos humanos e restrição à liberdade de imprensa” (Capítulo 42, p. 261).

Sobre a corrupção: “Em 2012, estima-se que a Nigéria tenha perdido mais de 440 bilhões de dólares da receita do petróleo para a corrupção que ocorre desde a independência” (Capítulo 40, p. 237).

Sobre crenças e superstições: “Muitos nigerianos têm crenças supersticiosas sobre a gravidez. Uma delas é que prender um alfinete na roupa de uma mulher grávida afasta os maus espíritos” (Capítulo 38, p. 229); “O grupo étnico iorubá considera as crianças gêmeas uma bênção poderosa e sobrenatural, acreditando que trazem grande riqueza e proteção para as famílias em que nascem” (Capítulo 44, p. 281).

Sobre descumprimento de leis: “O governo nigeriano tornou o casamento infantil ilegal em 2003. No entanto, cerca de 17% das garotas do país, especialmente na região norte da Nigéria, se casam antes dos 15 anos” (Capítulo 35, p. 215); “Apresar da criação da Agência Nacional para a Proibição do Tráfico de Pessoas, em 2003, para combater o tráfico de pessoas e crimes relacionados, um relatório da UNICEF de 2006 mostrou que aproximadamente 15 milhões de crianças menores de 14 anos, principalmente garotas, estavam trabalhando em toda a Nigéria” (Capítulo 49, p. 306).

Todos essas informações relacionam-se, direta ou indiretamente, com aspectos da fantástica história de Adunni. Estimulada pela mãe, que morreu muito cedo e com quem tinha ótima relação, ela acreditava na educação como a única maneira de não se calar – de não perder a capacidade de falar por si mesma e decidir o próprio destino.

Com a morte da mãe, Adunni é, primeiramente, vendida pelo pai aos 14 anos para ser a terceira esposa de um homem ávido para ter um filho do sexo masculino. Como terceira esposa, ela é tratada como serva pelo marido e perseguida pela primeira esposa. Na sequência, ela consegue fugir do casamento arranjado, mas acaba sendo vendida para uma família rica que mora em Lagos, na qual é explorada, surrada e humilhada pela patroa, além de sofrer frequentes ameaças do patrão de assédio sexual.

Apesar de todas as adversidades, Adunni mantém a perspectiva de voltar a estudar, a fim de escapar da vida em que nasceu e de construir o futuro que escolheu para si mesma, bem como de contribuir para que outras meninas como ela possam ter uma história diferente.

Por todas essas razões, recomendo vigorosamente a leitura de A garota que não se calou, um retrato da triste realidade ainda existente em várias partes do mundo, mas, ao mesmo tempo, uma semente de esperança sobre a possibilidade de sua superação.

 

Referências

DARÉ, Abi. A garota que não se calou. Tradução de Nina Rizzi. Campinas [SP]: Verus, 2021.

YOUSAFZAI, Malala; LAMB, Christina. Eu sou Malala: a história da garota que defendeu o direito à educação e foi baleada pelo talibã. Tradução de Caroline Chang, Denise Bottmann, George Schlesinger e Luciano Vieira Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

[1] No final dos Agradecimentos (p. 351), a autora informa que O livro de fatos da Nigéria: do passado ao presente não é real: os fatos nele reunidos estão todos disponíveis na internet.

[2] Dados mais recentes do Banco Mundial de 2021 indicam que a população da Nigéria é de 213,4 milhões de habitantes e que o PIB é de 440,8 bilhões de dólares.

[3] De  acordo com um relatório produzido em janeiro de 2022 pela Data Reportal, a Nigéria segue ocupando o topo da lista dos países africanos com mais usuários de internet, com cerca de 109,2 milhões.

[4] Muhammadu Buhari foi eleito presidente em 2015, governando novamente a Nigéria até o início deste ano. Nas eleições realizadas em fevereiro de 2023, foi eleito Bola Tinubo, também do partido governista Congresso de Todos os Progressistas (APC).