Roberto Campos, 104 anos

“Conversar com Roberto Campos é, ao mesmo tempo, um prazer e uma humilhação. Um prazer, pelos aforismos brilhantes que produz, e dos quais frequentemente me aproprio. Humilhação, porque armazena na memória um montão enciclopédico de fatos que eu não teria a paciência de pesquisar.”

Henry Kissinger

Há exatos quatro anos, tive o privilégio de participar do seminário em comemoração ao centenário do nascimento de Roberto Campos, realizado nas belíssimas instalações do Palácio do Itamaraty.

Na oportunidade, publiquei um artigo intitulado Centenário de Roberto Campos 1917-2017 (http://www.souzaaranhamachado.com.br/2017/04/centenario-de-roberto-campos/), reproduzindo 100 de suas frases inteligentes, espirituosas e/ou sarcásticas.

Dois anos depois, publiquei outro artigo intitulado Que falta faz Roberto Campos! (http://www.souzaaranhamachado.com.br/2019/04/que-falta-faz-roberto-campos/), no qual comento três livros publicados em homenagem ao centenário de seu nascimento.

Neste mesmo ano, gravei um comentário para o Podcast do Espaço Democrático intitulado O homem que pensou o Brasil (https://espacodemocratico.org.br/noticias/o-homem-que-pensou-o-brasil/).

Hoje, na data de seu aniversário, reproduzo alguns trechos do discurso por ele proferido no banquete de seus 80 anos, nas instalações também belíssimas do Copacabana Palace.

Afinal, homenagear Roberto Campos nunca é demais. Assusta perceber, a partir dos trechos aqui reproduzidos, como avançamos pouco no sentido de transformar o Brasil num país mais desenvolvido.

Meus amigos, jovens e velhos. A melhor coisa que se pode dizer sobre esta festa de oitenta anos é que, por imperativo biológico, ela não pode ser repetida.

Cabe-me agora explicar por que me opus, sendo finalmente derrotado pela família e pelos patrocinadores, ao uso do smoking nesta festa. É que ainda não perdi a esperança de me tornar um líder popular. E também porque nunca me esqueci do conselho de Nelson Rodrigues, numa mesa de bar, no dia em que deixei de ser ministro do Planejamento, em 1967: “Roberto, nada se parece mais com um garçon do que um ex-ministro de smoking”.

Tendo vivido 80 anos, sinto que vivi mais de um século. Pois este século, segundo o historiador marxista inglês Hobsbawn, “foi um século curto”. Segundo ele, teria começado com a I Guerra Mundial, em 1914, que pôs fim à belle époque do livre cambismo e do padrão ouro. E teria terminado com o colapso do império soviético em 1991, o último dos grandes impérios a desaparecer. Para outros, e eu me filio a essa corrente, o século foi ainda mais curto, pois teria começado com a Revolução Comunista de em 1917, ano em que nasci, para terminar com a queda do Muro de Berlim em 1989. Este século foi chamado pelo marxisya Hobsbawn de A era dos extremos. Em linha paralela, o historiador liberal Paul Johnson descreve-o como o “século do coletivismo”.

Foi sem dúvida o mais violento da história humana. Duas guerras sanguinolentas e uma longa guerra fria de 40 anos, sob ameaça constante de hecatombe nuclear. Foi o século que assistiu à ascensão, paixão e morte de três grandes carniceiros – Stalin, Hitler e Mao Tsé-Tung. Em conjunto, esses facínoras acolitados por tiranetes menores, faturaram 150 milhões de vítimas, na ânsia louca de reformarem o ser humano. Estima-se que neste século curto ter-se-iam perdido, por motivação política, não menos de 170 milhões de vidas, mais do que a soma de todos os mortos em guerras, catástrofes, conflitos raciais e perseguições religiosas, desde a origem dos tempos. Foi também um século admirável em que se desvendou o poder do átomo e se descobriu a hélice da vida.

As duas criações do liberalismo do século XIX – o capitalismo e a democracia – experimentaram seus maiores desafios. O desafio coletivista de esquerda visava a substituir a democracia pela ditadura do proletariado; e o capitalismo pelo comunismo. O desafio coletivista de direita entronizava a ditadura do Füher e substituía o ideário do livre comércio pela obsessão da autossuficiência.

Nos anos 30, o capitalismo passou a sofrer de uma doença interna: a Grande Depressão, que parecia consagrar a vitória decisiva das economias planificadas. O keynesianismo foi uma resposta de dentro do sistema, substituindo parcialmente o mercado pelo governo, mas criando, para corrigir vicissitudes da conjuntura, deformações de estrutura.

Tanto a democracia como o capitalismo sobreviveram a esses desafios. E o capitalismo democrático – isto é, o casamento da democracia política com a economia de mercado – se tornou vitorioso na cultura ocidental. Diz-se da democracia política que é o pior dos sistemas, excetuados todos os outros. Pode-se dizer também da economia de livre mercado que é o pior dos sistemas econômicos, excetuados todos os outros. Foi da combinação desses dois “piores” que nasceu o melhor: o capitalismo democrático. As ideologias alternativas, ou fracassaram no teste do tempo, como o socialismo real, ou não são universalizáveis como o nacionalismo e o fundamentalismo islâmico.

Ao contrário do que se passara na década dos 60, a dos 80 pode ser equiparada a uma “contrarreforma”, pois o País marchou na contramão da história. A redemocratização política em 1985 agravou ao invés de atenuar o intervencionismo econômico. E foi seguida de uma ladainha de erros. A política de nacionalismo informático ao fim do ciclo militar; os vários planos heterodoxos de estabilização; a moratória da dívida externa em 1987 e o grande desastre – a Constituição de 1988 – dirigista no econômico, utópica no social e híbrida no político. Foi uma “contrarreforma”, a qual, como disse à época o presidente Sarney, cuja presença neste ágape muito me honra, tornou o País ingovernável. A atual década de 90 se iniciaria com uma política esquizofrênica liderada por um governante esquizofrênico: infligiu-nos um desastre conjuntural, através do confisco de ativos financeiros, e nos trouxe um avanço estrutural, com a abertura da economia e o início da desestatização.

A tarefa com que o presidente Fernando Henrique Cardoso e todos nós nos defrontamos, hoje, é a realização das reformas de segunda geração para desfazimento da contrarreforma da Constituição de 1988. Essas reformas de segunda geração visam, além da estabilização monetária, à reestruturação e redimensionamento do Estado. Reestruturação, pelas reformas administrativa, fiscal e previdenciária. Redimensionamento, pela privatização de empresas estatais e serviços de infraestrutura.

Aceitarei mansamente o crepúsculo, sem raiva contra a morte da luz e a chegada da noite. E ainda que os cínicos digam que a experiência é apenas um nome que se dá aos erros preferidos, ouso extrair de minha experiência algumas “máximas do crepúsculo”. É o que chamarei de “decálogo liberal”, usando alguns conceitos meus e alguns emprestados de outros (que usarei sem pagar direitos autorais):

        • O Brasil deve parar de admirar o que não deu certo. (Tom Jobim)
        • O Governo não pode dar nada ao povo que primeiro dele não tenha tirado. (Richard Nixon)
        • No estado Babá, os assistentes sempre ficam melhor que os assistidos.
        • Não se deve confundir Estado forte com Estado grande. Para ser forte o estado tem que ser modesto.
        • Mais importante que as riquezas naturais são as riquezas artificiais da educação e da tecnologia.
        • O erro dos militares foi não terem feito a abertura econômica antes da abertura política; o erro dos civis foi, depois da abertura política, praticarem uma fechadura econômica.
        • O Estado é melhor como jardineiro, que deixa as plantas crescerem, do que como engenheiro, que desenha plantas erradas.
        • Os nacionalistas gastam mais tempo odiando os outros países do que amando o seu próprio país.
        • Os que creem que a culpa dos nossos males está em nossas estrelas e não em nós mesmos ficam perdidos quando as nuvens encobrem o céu.

Como veem, a agenda de reformas, a fim de resgatarmos nosso atraso no rendez-vous com o destino, é ampla e desafiante.

É tarefa para os jovens, que são proprietários do futuro, mais do que para os velhos de minha geração, que são inquilinos do passado.

Encerro, sugerindo aos amigos leitores, que confirmem a impressionante atualidade destas palavras de Roberto Campos lendo o artigo em homenagem a John Williamson, falecido nesta semana, tido como criador do Consenso de Washington, cujas propostas são também dotadas de notável atualidade (https://espacodemocratico.org.br/noticias/debate-sobre-a-privatizacao-precisa-perder-o-vies-ideologico/), e acompanhando o Diálogo no Espaço Democrático com o Prof. Marcio Holland, a respeito do inaceitável tamanho do Estado no Brasil (https://espacodemocratico.org.br/noticias/debate-sobre-a-privatizacao-precisa-perder-o-vies-ideologico/).