O imperialismo sedutor

 “Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor

Eu fui à  Penha, fui pedir à Padroeira para me ajudar

Salve o Morro do Vintém, pendura a saia que eu quero ver

Eu quero ver o Tio Sam tocar pandeiro para o mundo sambar

 

O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada

Anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato

Vai entrar no cuscuz, acarajé e abará

A Casa Branca já dançou a batucada de Ioiô, Iaiá  

 

Brasil, esquentai vossos pandeiros

Iluminai os terreiros

Que nós queremos sambar”

 

Assis Valente

 

No dia 10 de fevereiro último, a convite do SINDRATAR-SP (Sindicato das Indústrias de Refrigeração, Aquecimento e Tratamento de Ar no Estado de São Paulo), participei, juntamente com o Prof. Renaldo Gonsalves, de uma Live sobre as perspectivas da economia em 2021. Na reunião de alinhamento realizada na véspera, com a participação de Carlos Trombini, presidente do Sindicato, foram recomendados dois livros: Trombini recomendou o livro A grande regressão; Renaldo, O imperialismo sedutor.

Com a curiosidade despertada, apressei-me em adquirir os dois. Ainda bem. Já os li e agradeço as recomendações. Sobre o primeiro, cujo subtítulo é um debate internacional sobre os novos populismos e como enfrentá-los, escreverei oportunamente.

Neste artigo, vou focalizar o segundo, cujo subtítulo é a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra.

Escrito em 2000 pelo Prof. Antonio Pedro Tota, ganhou uma nova edição ampliada em 2020, com a inclusão de um Posfácio, no qual o autor procura preencher algumas lacunas identificadas na edição anterior, além de acrescentar alguns achados de pesquisas em novas fontes primárias e/ou novas publicações surgidas ao longo dessas duas décadas.

Antonio Pedro Tota, o autor, é doutor em história pela USP e professor titular de história contemporânea na PUC-SP, onde é colega de Renaldo Gonsalves.

O livro aborda temas que foram sempre objeto de acentuadas polêmicas e controvérsias nos campos da política, da economia, da sociologia e das relações internacionais, entre os quais a exploração e o imperialismo.

Vale destacar, desde logo, que o foco do autor incide sobre um aspecto e período específicos: a conquista do apoio do Brasil pelos Estados Unidos na Segunda Guerra, diante das posturas dúbias do presidente Getúlio Vargas, que ora flertava com os Aliados, ora com as forças do Eixo, lideradas por Adolf Hitler. Além disso, a ênfase recai sobre o papel dos meios de comunicação de massa na aproximação dos governos dos Estados Unidos, sobretudo durante a presidência de Franklin D. Roosevelt, e do Brasil, sob a presidência de Getúlio Vargas em plena vigência do Estado Novo.

Duas observações iniciais:

  1. A leitura de O imperialismo sedutor trouxe à minha memória dois livros que havia lido pouco depois de me formar em ciências econômicas em 1977. O primeiro deles, que teve grande repercussão no início da década de 1980, foi Para ler o Pato Donald, em que os autores Ariel Dorfman e Armand Mattelart fazem críticas ao capitalismo, baseando sua análise na influência do cinema norte-americano por meio, principalmente, dos personagens de Walt Disney. O segundo, bem menos badalado, foi Hollywood na cultura brasileira, do sociólogo Claudio De Cicco, que conheci pessoalmente nos anos em que atuei no Convívio (1979-1985).
  1. Tanto na minha formação como no exercício de minhas atividades profissionais, não foram raras as vezes em que constatei tentativas de convencimento/persuasão por parte de defensores de diferentes posições políticas ou ideológicas. Essas tentativas de “fazer a cabeça” iam muito além da exposição de determinadas teorias ou doutrinas, absolutamente normais ao longo de nossa formação acadêmica. A exploração e o imperialismo se prestam a isso. Quantas vezes não me deparei com “forçações de barra” com base na visão marxista ou em teorias nela inspiradas como a teoria da dependência e a teoria do imperialismo, cuja maior expressão editorial é Imperialismo, fase superior do capitalismo, de Vladimir Ilitch Ulianov, mais conhecido como Lênin?

Como o foco do autor foge dessa perspectiva economicista, não há no livro qualquer intenção de forçar a barra nessa direção ou de convencer que o enriquecimento dos Estados Unidos se deu – ou se dá – em consequência do empobrecimento do Brasil.

A ênfase, como já afirmei, recai sobre o uso dos meios de comunicação de massa como mecanismo de atração do Brasil e dos brasileiros para os valores norte-americanos e, mais especificamente, sobre a Política da Boa Vizinhança, expressão utilizada inicialmente por Herbert Hoover e adotada por Roosevelt a partir de 1933. Dentro dessa perspectiva, o autor destaca o papel relevante de Nelson Rockfeller e do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs.

Quanto aos meios de comunicação, vale a pena observar a importância da música, do cinema e do rádio, já que nessa época a televisão não havia sequer chegado ao Brasil[1].

Algumas considerações finais:

  1. A par dos personagens envolvidos formalmente nesse esforço de aproximação – presidentes, embaixadores, ministros etc. – chama a atenção a participação de cantores e artistas que se envolveram no processo, entre os quais Orson Welles, Errol Flynn, Douglas Fairbanks Jr. e Walt Disney.
  1. Interessante observar que a aproximação não se deu exclusivamente por meio de ações governamentais, identificando-se claramente a presença das forças do mercado. De acordo com Tota:

Os meios de comunicação, pelo menos no período estudado, foram usados pedagogicamente para americanizar o Brasil. Houve um projeto de americanização, quer dizer, ações deliberadas e planejadas visando a um objetivo. A existência desse projeto não exclui o processo de americanização conduzido pelas forças do mercado. Ao contrário, há evidências da imbricação dos dois processos.

  1. No esforço de aproximação entre Estados Unidos e Brasil não ocorreu apenas um processo de absorção unilateral. No caso da música, em particular, simultaneamente à influência do jazz, do be-bop e das bandas marciais no Brasil, tivemos ampla execução de músicas brasileiras em filmes e programas radiofônicos de grande audiência nos Estados Unidos. Exemplos disso são “Tico-Tico no Fubá”, “Cidade Maravilhosa” e “Aquarela do Brasil”, sem falar do extraordinário sucesso de Carmen Miranda. Sobre isso, assinala Tota:

Um povo só incorpora um determinado valor cultural de outro povo se ele fizer sentido no conjunto geral da sua cultura. Isso significa que a assimilação cultural não se faz por imitação, mas por um complicado processo de recriação. A assimilação cultural nunca ocorre em bloco. Um povo não aceita todos os elementos culturais do outro, mas apenas uma parte, e, mesmo assim, dando a eles novos sentidos. Essa assimilação envolve, portanto, uma escolha e uma recriação.

  1. Essa influência recíproca – ou americanização condicionada – revelou-se numa ocasião excepcional como a da Segunda Guerra, mas não desapareceu por completo, como bem observou Tota:

Talvez a americanização do Brasil, nos anos 1940, tenha se dado sob condições. Ficamos fascinados por Hollywood, mas em 1987 os americanos cantaram “Mamãe eu quero”, em A era do Rádio, de Woody Allen. Treze anos depois da guerra, Gordurinha parece ter compreendido melhor essa forma de condição: “Só boto be-bop no meu samba/ quando o Tio Sam pegar no tamborim”.

Encerro meu artigo reproduzindo o comentário conclusivo do autor a respeito do processo de assimilação cultural:

Resistência, antropofagia, condição e sincretismo ocorrem simultaneamente. Ou seja, a assimilação cultural não é uma simples imitação, como acentuam alguns de nossos críticos marxistas. A americanização “não é reprodução, nem repetição […]”. Ela forma uma unidade, mas mantém a distinção. “Unidos mas distintos, como soldados de pelotão”.[2]

Referências bibliográficas

DE CICCO, Cláudio. Hollywood na cultura brasileira. São Paulo: Convívio, 1979.

DORFMAN, Ariel; MATTELART, Armand. Para ler o Pato Donald: Comunicação de massa e colonialismo. Tradução de Álvaro de Moya. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.

GEISELBERGER, Heinrich (Org.). A grande regressão: um debate internacional sobre os novos populismos e como enfrentá-los. São Paulo: Estação Liberdade, 2019.

LENIN, Vladimir Ilitch. El Imperialismo, fase superior de Capitalismo. Moscou. Editorial Progreso, 1981.

TOTA, Antonio Pedro. O imperialismo sedutor: a americanização do Brasil na época da Segunda Guerra. 2ª ed. revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

Referências musicais

Aquarela do Brasil. Samba composto por Ary Barroso em 1939. Disponível com Gal Costa em https://www.youtube.com/watch?v=lYfTcdI0OM4.

Brasil Pandeiro. Samba-exaltação composto em 1940 por Assis Valente . Disponível com os Novos Baianos em https://www.youtube.com/watch?v=pOZxkhdeTXc.

Chiclete com Banana. Música de autoria de Gordurinha e Almira Castilho, gravada por Jackson do Pandeiro em 1959. Disponível com Beth Carvalho e Daniela Mercury em https://www.youtube.com/watch?v=Lz2YruxSy6c.

Cidade Maravilhosa. Marcha composta por André Filho e arranjada por Silva Sobreira para o Carnaval de 1935. Disponível com Meninas Cantoras de Petrópolis em https://www.youtube.com/watch?v=er7hvtcZf-o.

Mamãe eu quero. Marchinha de Carnaval de 1937, composta por Vicente Paiva e Jararaca. Disponível com Carmen Miranda em https://www.youtube.com/watch?v=0QkhQcPLPfg&t=10s.

Tico-Tico no Fubá.  Choro composto por Zequinha de Abreu que ficou imortalizado na voz de Carmen Miranda. Disponível em https://www.letras.mus.br/carmen-miranda/241982/.

Referência cinematográfica

A era do rádio (Radio Days)

Direção: Woody Allen

Gênero: Comédia

Elenco: Dianne Wiest, Mia Farrow, Seth Green, Julie Kavner, Josh Mostel.

Ano: 1987

Duração: 85 minutos

[1] A televisão no Brasil tem início comercialmente em 18 de setembro de 1950, quando foi inaugurada a TV Tupi em São Paulo, com equipamentos trazidos por Assis Chateaubriand, fundando assim o primeiro canal de televisão no país. Quatro meses depois, em 20 de janeiro de 1951, entra no ar a TV Tupi Rio de Janeiro.

[2] CASCUDO, Luís da Câmara. Sociologia do açúcar (Pesquisa e Dedução). Rio de Janeiro: Coleção Canavieira, n° 5, Divulgação do MIC, Instituto do Açúcar e do Álcool-Divisão Administrativa, Serviço de Documentação, 1971.