Desencontros da educação com o mundo real

“Infelizmente, poucas pessoas entendem a conexão entre criatividade e inovação. Fala-se muito sobre a ‘lei da inovação’, mas ninguém fala sobre a ‘lei da criatividade’. Seria ideal que isso ocorresse”.

Solange Wechsler

Por ocasião do Congresso Brasileiro de Economia de 2019, realizado em Florianópolis, fui procurado por uma pessoa ao final de meu minicurso sobre Criatividade que, depois de enaltecer a qualidade do que acabara de assistir, perguntou se eu disporia de algum tempo para conversar com ele. Marcamos uma reunião e ele me apresentou o trabalho que vem desenvolvendo há alguns anos sobre a utilização da voz humana como um fator econômico. Posteriormente, disponibilizou-me seu e-book intitulado Economia da Oralidade.

Seu nome é Jorge Cury Neto, e trabalhou muito tempo como jornalista, a maior parte do tempo em emissoras de rádio.

Mantivemos alguns contatos depois disso e ele me pediu para fazer uma revisão crítica do livro, a fim de verificar se havia alguma inconsistência de teoria econômica.

Tal solicitação levou-me a fazer uma leitura atenta do referido livro e, além de não identificar qualquer problema de consistência teórica, acabei ficando muito bem impressionado com dois aspectos ali contidos: o primeiro, sobre o qual vou me debruçar num outro artigo, diz respeito à dificuldade de saber ouvir, evidenciada por muitas pessoas; a segunda, não menos importante, refere-se a um problema grave existente na educação à distância, uma das áreas de aplicação da Economia da Oralidade, qual seja, a escassez de materiais de boa qualidade, o que prejudica sensivelmente o aproveitamento de quem se propõe a fazer um curso dessa natureza.

Entre os problemas identificados, o que me parece mais preocupante é a oferta de material incompleto e inadequado. Elaborado dessa forma, tal material é incapaz de ter o efeito esperado sobre estudantes que possuem diferentes estilos de aprendizagem, sendo alguns predominantemente auditivos, outros visuais e outros ainda cinestésicos.

Como observa o autor, “a oferta de palavras, imagens e sons em uma apresentação unificada torna a integração entre os canais de processamento sensorial mais fácil, da mesma forma que atividades práticas ativam o processo de transmissão dos novos conhecimentos aos conhecimentos preexistentes”.

Dando continuidade à reflexão sobre outras contradições na educação, não pude deixar de identificar dois outros aspectos em que percebo claro desencontro entre o que acontece nas escolas e faculdades e as exigências do mundo real. Desses aspectos, um está relacionado à questão metodológica, enquanto o outro à constituição curricular.

Mesmo reconhecendo que o papel da educação vai muito além de qualificar mão de obra para o mercado de trabalho, este é um dos objetivos de muitos estudantes que frequentam as instituições de ensino. Nesse sentido, é inconcebível que, em pleno início do século XXI, caracterizado por mudanças em ritmo vertiginoso, pela disseminação de tecnologia altamente sofisticada, pelo enorme alcance dos meios de comunicação e por acirrada competitividade,  em muitas escolas e faculdades ainda haja um contingente expressivo de professores que ministram aulas semelhantes às que tiveram quando estudantes, décadas atrás. Fazendo uma simplificação grosseira, adotam um modelo pedagógico que combina ensino padronizado, baseado na maior parte das vezes em exposição oral, e avaliações individualizadas, nas quais se exige mais a reprodução do que foi ensinado aos alunos do que a produção do conhecimento. Muitas vezes, espera-se do aluno que reproduza nas avaliações o que foi decorado por meio da leitura de anotações ou textos apostilados, já que é cada vez menos frequente a leitura de livros. A par disso, só são estimuladas duas das múltiplas inteligências, verbal-linguística e lógico-matemática, numa evidente desvantagem para estudantes que se destacam nas outras inteligências identificadas por Howard Gardner.

Por melhor que seja o ensino das instituições onde predomina este binômio (ensino padronizado + avaliação individualizada), o estudante sofre um baque ao se defrontar com as exigências do mercado de trabalho, uma vez que além de não estar preparado para trabalhar em equipe e de não ter praticado habilidades e competências típicas das outras inteligências, ele revela enorme dificuldade para solucionar problemas inesperados e não é capaz de ser criativo e inovador, pois se limitou durante anos apenas a reproduzir conteúdos.

Felizmente, parece haver um número crescente de exemplos que sinalizam numa nova direção, procurando tornar as atividades escolares mais dinâmicas, interessantes para os alunos, e mais aproximadas dos problemas reais. A matéria Chacoalhada no currículo, publicada pela Veja São Paulo do dia 12 de fevereiro, não deixa de ser animadora nesse sentido.

O segundo aspecto diz respeito à ausência, no currículo da esmagadora maioria de cursos escolares e universitários, de conteúdos relacionados à criatividade, pré-requisito indispensável para a inovação e o empreendedorismo.

A esse propósito, vale a pena reproduzir o depoimento da Professora Solange Wechsler, presidente da Associação Brasileira de Criatividade e Inovação – Criabrasilis:

Criatividade e inovação são dois conceitos complementares. Para ter uma inovação, é preciso de uma ideia, uma ideia diferente. Se não houver uma ideia diferente, haverá simplesmente uma cópia. Então, para haver uma inovação é preciso ter uma ideia original. Por isso que a criatividade é essencial para a inovação. […] A criatividade não está sendo estimulada e por isso a nossa preocupação. Como nós vamos desenvolver este país se a gente não desenvolver a criatividade? Como nós vamos chegar à inovação se a gente não desenvolver este elo entre criatividade e inovação?

Em 2015, a criatividade era considerada a décima competência (habilidade ou “skill”) mais importante pelo mercado de trabalho. De lá para cá, ela vem galgando posições. Na reunião do Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2018, ela foi apontada como a terceira competência mais importante para quem pretende se tornar um profissional bem sucedido. Nesse sentido, é inaceitável que as instituições de ensino continuem agindo como se a criatividade fosse um atributo inato, ou seja, que nasce com qualquer pessoa. A rigor, mesmo reconhecendo que algumas pessoas, por sua personalidade, podem ter mais facilidade de externalizar sua criatividade, ela se constitui numa área de conhecimento como qualquer outra, havendo diversas linhas de pesquisa a seu respeito nas sucessivas gerações que têm se dedicado ao seu estudo, como pode se ver no quadro 1.

Quadro 1 – Principais linhas de pesquisa sobre criatividade

Geração Denominação Ênfase Expoente(s)
1ª) Anos 1950 Pensamento criativo Desenvolvimento de habilidades J. P. Guilford
2ª) Década de 1960 Solução criativa de problemas Produtividade Alex Osborn e Sidney Parnes
3ª) Década de 1980 Viver criativo Autotransformação David de Prado
4ª) Década de 1990 Criatividade como valor social Solução de problemas sociais, aberta à vida, e ao cotidiano Saturnino de la Torre
5ª) Início do século XXI Economia criativa Geração e exploração da propriedade intelectual John Howkins e Richard Florida
Elaboração do autor

Lamentavelmente, porém, confirmando as colocações de Solange Wechsler, reafirmo que são raríssimas as escolas e faculdades que oferecem alguma formação sistemática sobre esta indispensável área do conhecimento.

Iscas para quem quiser se aprofundar

Referências bibliográficas e webgráficas

BASSETTE, Fernanda. Chacoalhada no currículo. Veja São Paulo, 12 de fevereiro de 2020, pp. 14-17.

CURY NETO, Jorge. Economia da Oralidade (e-book). Voice Design, 2019.  http://voicedesign.com.br/wp-content/uploads/2019/05/E-BOOK-Economia-da-Oralidade-1-14maio2019-WEB.pdf.

DRYDEN, Gordon e VOS, Jeannette. Revolucionando o aprendizado. Tradução de Marisa do Nascimento Paro. Revisão técnica de Victor Mirshawka. São Paulo: Makron Books, 1996.

GARDNER, Howard. Frames of mind: the theory of multiple intelligences. New York, NY: Basic Books, Harper Collins s/d.

MACHADO. Luiz Alberto. Como enfrentar os desafios da carreira profissional. São Paulo: Trevisan Editora, 2012.

WECHSLER, Solange M. O elo entre criatividade e inovação. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=CUdlMis-Uhg&feature=youtu.be&fbclid=IwAR0W8CLS-EkAazLCXqqktDTWzO_z-i_FWFn4WCk2JDIeqGwqiXfUJcvPI2g.