Rebeliões das massas

“Massa é todo aquele que não atribui a si mesmo um valor – bom ou mau – por razões especiais, mas que se sente ‘como todo mundo’ e, certamente, não se angustia com isso, sente-se bem por ser idêntico aos demais.”

José Ortega y Gasset

No último dia 5 de dezembro, o Espaço Democrático recebeu o especialista em relações internacionais Carlos Gustavo Poggio para um diálogo com seu corpo de consultores a respeito da proliferação de manifestações em curso pelo mundo.

Ele começou por identificar os países em que ocorrem ou ocorreram recentemente grandes manifestações: Hong Kong, França, Irã, Iraque, Egito, Síria, Líbano, Chile, Bolívia, Colômbia e Venezuela.

A seguir, levantou algumas características relevantes, entre as quais: não há relação entre elas, embora a rápida divulgação, disseminação e contágio sejam facilitados pela globalização; a motivação é distinta na maior parte dos casos (política, em umas, econômica, noutras, social, administrativa ou de governança em outras ainda); é difícil identificar uma liderança clara na maior parte delas; a mobilização é feita pelas redes sociais, a baixo custo e de forma impessoal.

Nessas condições, milhares de manifestantes aderem também de forma impessoal, sem necessidade de identificação aparente. Passam a fazer parte da massa, adotando posturas e praticando ações como se fossem líderes do movimento, porém ocultos na segurança do anonimato.

Voltei para casa naquele dia intrigado, pensando numa referência. No próprio dia, pensei no livro Ilícito, de Moisés Naím, que aborda o lado sujo da globalização, representado pelo crime organizado e pelos tráficos de gente, de armas e de drogas. Mas não fiquei satisfeito. Continuei intrigado, achando que deveria haver uma fonte melhor.

Dias depois identifiquei a fonte adequada. Trata-se de A rebelião das massas, do espanhol José Ortega y Gasset. Escrito em 1937, muito antes da internet, portanto, já identificava no fenômeno do “império das massas” o tipo de conduta que se vê nas manifestações.

O primeiro capítulo do livro dá uma ideia clara, feitas as devidas adaptações, de quão oportuna é a análise de Ortega y Gasset para descrever a atual realidade repleta de manifestações populares:

Há um fato que, seja para o bem ou para o mal, é o mais importante na vida pública europeia do momento. Esse fato é o advento das massas ao pleno poderio social. Como as massas, por definição, não devem nem podem dirigir sua própria existência, e muito menos reger a sociedade, a Europa enfrenta atualmente a crise mais grave que possa ser enfrentada por povos, nações ou culturas. Essa crise já aconteceu várias vezes no curso da história. Suas características e suas consequências já são conhecidas. Também já se conhece seu nome. Chama-se a rebelião das massas.

A meu juízo, este é um verdadeiro exemplo de genialidade: descrever com tanta antecedência e com tamanha precisão acontecimentos que só terão lugar muitos anos depois na história da humanidade.

Referências bibliográficas

NAÍM, Moisés. Ilícito: o ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global. Tradução de Sérgio Lopes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.

ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião das massas. Tradução de Marylene Pinto Michael; revisão da tradução de Maria Estela Heider Cavalheiro. São Paulo: Martins Fontes, 2007.