Show de diplomacia

 Brasil é exceção

 

“Fronteiras? Nunca vi uma. Mas ouvi dizer que existem na mente de algumas pessoas.”

Thor Heyerdahl

 

Assumidamente apaixonado por esportes de uma forma geral, fico, a cada quatro anos, particularmente envolvido com a Copa do Mundo de Futebol, descrita pelo jornalista Thiago Uberreich como “o maior espetáculo esportivo do planeta”. Com propriedade, ele afirma na Apresentação de seu recém-lançado Biografia das copas:

Os fanáticos por futebol sabem que a vida é feita de ciclos que duram quatro anos. Somos capazes de fazer referências a períodos de nossa vida com base nas Copas do Mundo. Quando você se casou? Ah, eu casei no ano da Copa de 1998. Ah, eu me formei na faculdade no ano em que o Brasil ganhou o tetra! Pode parecer exagero, mas é a pura verdade. Certamente você tem uma recordação especial de uma Copa do Mundo. Como eu digo no capítulo sobre o mundial de 1982, a Copa mexe com a nossa memória afetiva. Aquela seleção até hoje nos faz acreditar que o futebol é uma arte e um espetáculo[1].

Sendo assim, não poderia deixar passar em branco a recém-encerrada Copa do Mundo da Rússia. Escrevi sobre ela em parceria com o economista Paulo Galvão Júnior, cerca de dois meses antes de seu início, num artigo intitulado A Copa do Mundo Socioeconômica, no qual focalizamos a Copa do Mundo por um ângulo diferente, enfatizando os indicadores socioeconômicos dos 32 países participantes. Volto ao tema agora, intencionalmente depois de alguns dias de seu encerramento, a fim de abordar outro aspecto pouco explorado do evento, qual seja, seu papel no campo das relações internacionais, mais especificamente no da diplomacia.

O Dicionário de relações internacionais de Guilherme Silva e Williams Gonçalves apresenta a seguinte definição de diplomacia: 

Diplomacia. A literatura sobre as relações internacionais atribui mais de um sentido à palavra diplomacia. Esse termo tanto pode assumir sentido amplo como restrito. Em sentido amplo, diplomacia pode possuir o significado de política externa, política mundial ou ainda relações internacionais. Quando Henry Kissinger afirma, por exemplo, que “houve somente uma ocasião em que a Inglaterra considerou a diplomacia dos congressos compatível com seus objetivos” (Kissinger, 1999: 93), está atribuindo à diplomacia o sentido de relações internacionais ou política mundial. Quando o mesmo Kissinger diz: “por mais hábil que fosse a diplomacia de Bismark, a necessidade de tanta manipulação comprovava as tensões que uma Alemanha forte e unificada impunha ao equilíbrio de poder europeu” (Kissinger, 199: 177), está, desta vez, atribuindo à diplomacia o sentido de política externa.

No sentido restrito, diplomacia é definida por Philippe Cahier como “a maneira de conduzir os assuntos exteriores de um sujeito de direito internacional, utilizando meios pacíficos e principalmente a negociação” (Cahier, 1965: 93). Sérgio Bath, por outro lado, de maneira mais precisa, define diplomacia como “o meio pelo qual os governos buscam atingir seus objetivos e obter apoio a seus princípios. É o processo político mediante o qual as posições de política externa de um governo são inicialmente sustentadas e logo orientadas para o objetivo de influenciaras posições políticas e a conduta de outros governos (Bath, 1989:14).

Não resta dúvida que a Copa do Mundo passou por um extraordinário processo de evolução até se transformar, repetindo a identificação de Thiago Uberreich, “no maior espetáculo esportivo do planeta”.

Quem teve papel decisivo na transformação da FIFA de uma forma geral – e da Copa do Mundo, em particular – no que se transformaram hoje em dia foi o brasileiro João Havelange. Tal processo pode ser visto no livro Jogo duro, de Ernesto Rodrigues. Fica evidente ali a razão pela qual a FIFA, que possui um número de filiados superior ao da Organização das Nações Unidas (ONU), foi capaz de provocar uma exclamação que se tornou famosa do ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan. Num arroubo de sinceridade, admitiu que ficava “verde de inveja” da Copa do Mundo por sua capacidade de unir os povos. Na mesma entrevista concedida ao jornal alemão Bild am Sonntag, afirmou Annan: “É o único jogo do mundo que se realiza em qualquer país e por gente de todas as raças e religiões”.

Mais tarde, Havelange acabou se envolvendo numa série de graves problemas com a participação da FIFA[2], manchando gravemente a sua reputação, a ponto de ter renunciado ao cargo de presidente de honra da entidade, a fim de escapar de qualquer tipo de punição por seu envolvimento em casos de corrupção. Esse aspecto, sem dúvida lamentável, não deve, porém, apagar o papel relevante desempenhado por ele na transformação da FIFA num dos mais importantes – senão o mais importante – atores da organização esportiva mundial.

Em consequência dos problemas de corrupção envolvendo a FIFA, que continuaram e até se agravaram na gestão de Joseph Blatter, sucessor de Havelange, a entidade viveu um período em que seu nome aparecia mais nas páginas policiais do que nas esportivas.

Sendo assim, a Copa do Mundo da Rússia poderia se constituir numa ótima oportunidade para a recuperação da imagem da FIFA e, por extensão, do próprio futebol.

E a oportunidade foi muito bem aproveitada, pois o que o mundo todo pôde testemunhar foi um verdadeiro show de diplomacia que envolveu diversos personagens e instituições.

Analisando pela ótica da diplomacia clássica, um dos grandes destaques foi o presidente Vladimir Putin, visto como o principal responsável pela realização de uma Copa do Mundo extremamente bem organizada. A par da excelência revelada pelo planejamento do evento, a Rússia e sua população deram uma demonstração de cordialidade, contrariando sua própria tradição, sabendo receber torcedores e turistas de todas as partes do mundo com alegria e entusiasmo, que foi crescendo à medida que o desempenho de sua seleção foi superando todas as expectativas.

Outro fator de destaque da Copa da Rússia foi a presença de considerável número de chefes de Estado que prestigiaram suas respectivas seleções. Temia-se, antes do início da Copa, um grande boicote por parte de chefes de Estado estrangeiros em razão da tensão agravada desde que o Reino Unido acusou o Kremlin de envenenar um ex-espião russo e sua filha na Inglaterra. Efetivamente, o número de chefes de Estado na abertura da Copa, no dia 14 de junho, não era muito elevado. Entretanto, com o início da competição foi possível constatar a presença de importantes lideranças acompanhando suas respectivas seleções, entre as quais o rei da Espanha, Felipe VI.

O presidente da França, Emmanuel Macron, foi outro que furou o boicote dos países ocidentais viajando à Rússia para acompanhar a seleção de seu país e comemorando o título merecidamente conquistado.

Quem roubou a cena, porém, foi a presidente da Croácia, Kolinda Grabar-Kitarovic, que esbanjou simpatia nos jogos da seleção de seu país. Notícias dando conta de que viajou em avião de carreira pagando sua própria passagem e autorizando o desconto de seu salário nos dias em que esteve ausente do país tornaram sua imagem ainda mais respeitada, em especial por parte de populações de países que estão cansadas de testemunhar exemplos inacreditáveis de desperdício de recursos públicos em viagens de seus governantes.

O Brasil passou em branco, já que o presidente Temer até considerou participar da abertura, após ser convidado por Putin, mas desistiu diante das turbulências políticas em casa.

Descendo para o nível da paradiplomacia, quem teve grande destaque na Copa do Mundo da Rússia foi o presidente da FIFA, Gianni Infantino, que vem contribuindo decisivamente para a recuperação da imagem da entidade e que se notabilizou por seu comportamento discreto e por declarações bastante oportunas antes, durante e após a competição.

Também neste nível a participação do Brasil foi reprovável. Depois de se comprometer com toda a América do Sul que votaria pela candidatura tripla da América do Norte – Canadá, Estados Unidos e México, o presidente em exercício da Confederação Brasileira de Futebol, coronel Antônio Nunes, votou a favor do Marrocos para sediar a Copa do Mundo de 2026, abrindo uma crise na Conmebol e aprofundando o descrédito sobre a CBF, que se agravou violentamente nos últimos anos graças ao envolvimento em casos de corrupção dos dirigentes Ricardo Teixeira, José Maria Marin e Marco Polo del Nero.

Tenho para mim que essa atitude do presidente da CBF teve repercussão dentro do gramado, com a evidente má vontade das arbitragens nos jogos da seleção brasileira.

Gianni Infantino, fazendo um balanço da Copa, afirmou: “O futebol mudou a percepção do mundo sobre a Rússia. Quase um milhão de pessoas estiveram aqui, em todas as cidades. É um país lindo, que quer mostrar ao mundo que o que às vezes se diz não é o que acontece aqui. É um país extremamente rico em cultura, na história de todos nós. Foi uma grande aventura. E as centenas de milhares de pessoas que vieram puderam sentir a grande atmosfera”.

Efetivamente, durante um mês, a Copa do Mundo da Rússia possibilitou a convivência harmônica de pessoas de diversas partes do mundo, aproximando-se do sonho de John Lennon expresso numa das maiores criações do século XX.

Imagine there’s no heaven
It’s easy if you try
No hell below us
Above us only sky
Imagine all the people living for today

Imagine there’s no countries
It isn’t hard to do
Nothing to kill or die for
And no religion too
Imagine all the people living life in peace, you

You may say I’m a dreamer
But I’m not the only one
I hope some day you’ll join us
And the world will be as one

Imagine no possessions
I wonder if you can
No need for greed or hunger
A brotherhood of man
Imagine all the people sharing all the world, you

You may say I’m a dreamer
But I’m not the only one
I hope some day you’ll join us
And the world will be as one

 

Referências bibliográficas e webgráficas

BATH, Sérgio. O que é diplomacia. Coleção Primeiros Passos 221. São Paulo: Brasiliense, 1989.

CAHIER, Philippe. Derecho diplomático contemporáneo. Madrid: Rialp, 1965.

CHADE, Jamil. Política, propina e futebol: Como o “Padrão Fifa” ameaça o esporte mais popular do planeta. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

FOER, Franklin. Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

KISSINGER, Henry. Diplomacia. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1999.

MACHADO, Luiz Alberto; GALVÃO JÚNIOR, Paulo. A Copa do Mundo Socioeconômica. Disponível em http://www.souzaaranhamachado.com.br/2018/04/a-copa-do-mundo-socioeconomica/.

PERUMAL, Wilson Raj; RIGHI, Alessandro; PIANO, Emanuele. O submundo do futebol: confissões de um manipulador de resultados. Tradução de Ivar Panazzolo Junior e Natália Bis M. Weinsztock. Bauru, SP: Alto Astral: 2016.

RODRIGUES, Ernesto. Jogo duro: a história de João Havelange. Rio de Janeiro: Record, 2007.

SILVA, Guilherme A.; GONÇALVES, Williams. Dicionário de relações internacionais. Barueri, SP: Manole, 2005.

UBERREICH, Thiago. Biografia das Copas. São Paulo: Onze Cultural, 2018.

URY, William; SZEPESI, Stefan (editores). Caminho de Abraão. Tradução de Marcia Leme. São Paulo: Nobel, 2016.

 

Referência musical

 

LENNON, John. Imagine. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=YkgkThdzX-8.

 

[1] Recomendo, a título de sugestão, o livro de Franklin Foer, Como o futebol explica o mundo: um olhar inesperado sobre a globalização (Jorge Zahar, 2005), para os que quiserem conhecer detalhes interessantes da paixão despertada pelo futebol.

[2] A respeito da corrupção envolvendo a FIFA, recomendo a leitura de Política, propina e futebol, do jornalista Jamil Chade (Objetiva, 2015). Já a respeito da manipulação de resultados, envolvendo inclusive jogos de importantes campeonatos internacionais, recomendo a leitura de O submundo do futebol, cujo principal autor é Wilson Raj Perumal (Alto Astral, 2016).