O elogio do vira-lata

 

Aquele que for somente um economista não tem condições de ser um bom economista, pois todos os nossos problemas tocam em questões de filosofia.
Friedrich von Hayek

 

É, para mim, motivo que provoca enorme prazer dedicar-se à leitura dos livros de Eduardo Giannetti. Tive essa sensação logo ao me deparar com seu primeiro livro publicado no Brasil. Talvez o menos conhecido de sua já vasta produção, foi publicado pelo Instituto Liberal com o título Liberalismo X Pobreza. Já naquele tempo, pouco depois de retornar de uma temporada na Inglaterra, onde obteve seu doutorado na consagrada Universidade de Cambridge, Giannetti revelava uma qualidade rara entre os economistas: a de conseguir escrever de forma extremamente clara e agradável, conseguindo, sem perda nem de qualidade nem de profundidade, elaborar um texto acessível a qualquer pessoa.

Vários fatores contribuem para isso, entre os quais dois merecem, a meu juízo, destaque especial. O primeiro decorre de sua extraordinária cultura geral, que lhe permite abordar temas muito variados e estabelecer paralelos e comparações inigualáveis. O segundo decorre de sua formação em Ciências Sociais, cursada em paralelo com o curso de Ciências Econômicas, ambos na Universidade de São Paulo.

Esses dois fatores foram essenciais para explicar o sucesso editorial de seus livros, que não raro atingem tiragens dificilmente atingidas por outros textos da mesma natureza e por fazer de Giannetti um dos mais bem-sucedidos e requisitados palestrantes do País.

Em mais de três décadas lecionando no ensino superior, constatei que os alunos, com raras exceções, são avessos à leitura, reclamando muito dos livros que são obrigados a ler por indicação de seus professores. Muitos impropérios e exclamações do tipo “Esse cara pensa que eu não tenho mais nada a fazer na vida a não ser ler os livros que ele indica” foram dirigidos a mim e a meus colegas quando anunciávamos aos alunos o(s) livros(s) que deveriam ler. Como, na maior parte das vezes, os textos eram complexos e de difícil compreensão, as críticas se avolumavam ao final da leitura, que, diga-se de passagem, nem todos faziam. Só me recordo, em minha extensa trajetória, de três livros que foram objeto de elogios por parte dos alunos: Um ‘TOC’ na cuca, de Roger von Oech, O atroz encanto de ser argentino, de Marcos Aguinis, e O valor do amanhã, de Eduardo Giannetti. O agrado propiciado pelos dois primeiros é mais fácil de entender, pois focalizam os bloqueios mentais que freiam o nosso potencial criativo e as razões que explicam as agruras enfrentadas pela Argentina a partir da segunda metade do século passado, depois de ter atingido um nível de desenvolvimento superior ao de diversos países do sul da Europa até a década de 1950. Já O valor do amanhã trata da relação entre ética e taxa de juros. Convenhamos, um tema aparentemente muito complicado. E, no entanto, graças à qualidade do texto de Giannetti, vários alunos me procuraram para elogiar a escolha.

O caráter multicultural de Giannetti, razão de ser da escolha da epígrafe deste artigo, transparece nas três partes em que o livro se divide. A primeira, Enredos brasileiros, é constituída de ensaios que abordam “temas e problemas da vida brasileira, tendo por fio condutor o desafio da construção prática e simbólica de uma nação à altura dos nossos sonhos e anseios”. Na segunda, Dispersos literomusicais, “estão agrupados, à maneira de um intermezzo, ensaios assumidamente ecléticos e diletantes sobre temas que vão de Aristóteles a Mozart e de Dom Casmurro às implicações éticas dos avanços recentes da neurociência”. A terceira, por fim, Filosofia econômica, contém artigos de cunho acadêmico na área em que por mais de trinta anos Giannetti se dedicou à docência e à pesquisa na Universidade de Cambridge, na Universidade de São Paulo e no Insper: a filosofia e a história do pensamento econômico.

Dos 25 textos escritos entre 1989 e 2018 reunidos no livro, apenas dois são inéditos, O elogio do vira-lata e Agostinho da Silva, semeador de vida. Todos os outros foram previamente publicados, recebendo alguns deles pequenos retoques e atualizações, incapazes de alterar o significado original. O fato de ter lido anteriormente vários dos textos contidos no livro, porém, não diminuiu em absoluto meu interesse e minha satisfação de revisitá-los.

Difícil apontar destaques num livro tão repleto de qualidades. Para não me furtar a esse desafio, desejável num artigo/resenha, ouso fazer três menções em nível de realce especial.

A primeira menção vai para o texto de abertura, intitulado O elogio do vira-lata, que versa “sobre o ‘complexo de vira-latas’ que desde a nossa origem ensombrece a condição de ser brasileiro”. Sendo um dos dois únicos textos inéditos, arrisco-me a dizer que sua leitura vale, de certa forma, pelo livro todo, tal a capacidade de Giannetti de reinterpretar uma expressão que no imaginário de qualquer pessoa tem uma conotação extremamente negativa.

Com acentuado sentido histórico e recorrendo a exemplos muito bem escolhidos, Giannetti recoloca noutro patamar a ideia do “complexo de vira-latas”, procurando – e conseguindo, a meu juízo – mostrar que essa característica, normalmente vista como um traço negativo do Brasil e dos brasileiros, tem aspectos muito positivos. Permito-me, pala ilustrar, reproduzir os dois últimos parágrafos do referido texto:

O vira-lata celebra os valores da amizade, do convívio e da amabilidade sem cálculo; a disponibilidade para desfrutar intensamente o momento; o prazer de sorrir e saudar a todos que com ela ou ele casualmente cruzam nas ruas; a eterna disposição de festejar e brincar, por mais tênue que seja (ou não) o pretexto; o doce sentimento da existência nos climas e ecopsicologias onde o mero existir é um prazer; a experimentação inovadora na arte da vida. Amor sem coleira, trabalho sem patrão. Para o vira-lata, “a alegria é a prova dos nove”.

Pensar mal amiúde significa tornar mau. “As grandes épocas de nossa vida”, observa Nietzsche, “são aquelas em que temos a coragem de rebatizar nosso lado mau de nosso lado melhor.” Em meio à precariedade das condições de vida para a maioria e do emaranhado político e institucional da nossa capenga República, o vira-lata mantém viva a chama de uma essencial virtude: o dom da vida como celebração imotivada. No dia em que nós, brasileiros, tivermos orgulho de ser vira-latas, aí sim, e de uma vez por todas, deixaremos para trás o “complexo de vira-latas” e poderemos correr enfim para o beijo a para o abraço.

A segunda menção especial vai para algo já mencionado anteriormente, mas que faço questão de enfatizar. Diz respeito à extraordinária cultura geral de Giannetti aliada à capacidade de evoluir e acrescentar novos conhecimentos a seu já notável acervo. Essa característica, familiar a quem costuma acompanhar a trajetória intelectual de Giannetti, fica evidente, sobretudo na segunda parte do livro em que ele envereda pelos campos da literatura, da filosofia, da música – da clássica em particular –, da psicologia e da neurociência. Os três primeiros campos são explorados em outros livros de Giannetti, entre os quais O livro das citações e Trópicos utópicos. Já a psicologia e a neurociência estavam presentes em Auto-engano e Felicidade, além de se constituírem na essência de A ilusão da alma.

Como economista, que também dedicou grande parte de sua vida acadêmica ao ensino da história do pensamento econômico, não poderia de deixar de dar minha última menção especial à terceira parte do livro, na qual Giannetti mostra com sobras por que é um dos maiores – senão o maior – especialistas brasileiros na economia política clássica, com destaque para Adam Smith, John Stuart Mill e Alfred Marshall. Trata-se de uma viagem deliciosa aos meandros do conhecimento econômico desses monstros sagrados, perpassando pela filosofia e pela ética, e dando especial ênfase à educação e ao investimento em capital humano como peças-chave do crescimento econômico e do desenvolvimento.

 

 

Referências bibliográficas

 

AGUINIS, Marcos. O atroz encanto de ser argentino. São Paulo: Editora Bei, 2002.

GIANNETTI, Eduardo. O elogio do vira-lata e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

_______________ Liberalismo X Pobreza. São Paulo: Inconfidentes, 1989.

_______________ Auto-engano. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

_______________ Felicidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

_______________ O valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

_______________ O livro das citações: um breviário de ideias replicantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

_______________ A ilusão da alma: biografia de uma ideia fixa. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

_______________ Trópicos utópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

OECH, Roger von. Um “TOC” na cuca. Tradução de Virgílio Freire. Ilustrações de Claudia Scatamacchia. São Paulo: Livraria Cultura Editora, 1993.