Democracia tropical

 

Poucas pessoas, em minha opinião, revelaram ao longo de sua trajetória pessoal um processo de amadurecimento tão extraordinário quanto Fernando Gabeira.

Trata-se, evidentemente, de minha opinião e, nesse sentido, assumo integralmente toda a responsabilidade por ela.

Como era muito jovem no final da década de 1960, quando Gabeira participou ativamente da luta armada, minha opinião a respeito dele foi sendo construída anos depois, em especial quando ele voltou ao Brasil após os anos de exílio passados na Argélia, em Cuba, na Alemanha, no Chile e na Suécia.

Minha primeira lembrança marcante de Gabeira remonta ao filme O que é isso, companheiro? Baseado no livro de sua autoria que se tornou best seller, o filme focaliza o sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick e, nele, Gabeira é interpretado pelo ator Pedro Cardoso.

Intelectual do grupo que executava o sequestro, Gabeira já se notabilizava na época pelo bom manejo das palavras, razão pela qual foi incumbido de redigir a carta enviada às autoridades com as exigências para a libertação do embaixador. Numa cena impecável, que ficou marcada em minha memória, ele encontra-se na frente de um teatro com um ator que está aguardando o início do ensaio geral de uma peça de Ibsen. Interpretado por Eduardo Moscovis, o referido ator pergunta a ele, que está carregando quatro pizzas, se estava com tanta fome. Diante da resposta de Gabeira de que ia a uma festa, pergunta: “Algum embaixador convidado?” Na sequência, emenda com um trecho do texto da carta recentemente divulgada pelos meios de comunicação, deixando claro que havia reconhecido seu estilo inconfundível.

Depois de acompanhar pelo noticiário seu desempenho na cena política brasileira, quer como deputado federal quer como candidato à prefeitura e ao governo do Rio de Janeiro, passei a ler, sempre que possível, seus artigos em O Globo e em O Estado de S. Paulo, a partir do momento em que retomou suas atividades como jornalista. Mais recentemente, tenho assistido, sem muita regularidade, ao programa com seu nome na GloboNews.

Em 2012, minha admiração por Gabeira cresceu consideravelmente graças à leitura de Onde está tudo aquilo agora? (Companhia das Letras, 2012). Com o subtítulo Minha vida na política, Gabeira revela seu desencanto com a política brasileira de uma forma geral e, em especial, com os rumos seguidos pelo PT e outros partidos de esquerda que a ele se associaram após a conquista do poder. Francamente decepcionado, ele fica imaginando as razões que levaram ao completo abandono dos ideais que tanto admirara em sua juventude.

Entre outros fatores, percebe-se que os anos de exílio tiveram influência marcante na evolução de seu pensamento, com destaque para as questões ligadas às mudanças climáticas e à destruição do meio ambiente.

Uma das coisas que Gabeira deixa claro nesse livro autobiográfico é que na atividade política não é fácil ficar à margem do patrulhamento levado a cabo por militantes de ambos os espectros ideológicos, incapazes de aceitar as mudanças pelas quais o mundo, inevitavelmente, passa. Isso fica explícito num trecho em que ele se queixa da reação à sua posição favorável à quebra do monopólio estatal das telecomunicações:

Fiz muitos discursos sobre o momento histórico, escrevi artigos e tudo o mais. O mundo tinha dado voltas, caíra o Muro de Berlim, no entanto algumas ideias não desapareciam. Uma delas era a de que a privatização significa retrocesso. A outra, a de que privatizar significa, necessariamente, um progresso. Os dogmas estavam mortos para mim e eu tentava me esquivar deles nos dois flancos, esquerdo e direito. Nada era infalível, nem Estado nem mercado.

Em 2013, fui convidado a falar sobre economia criativa num seminário do PPS em Brasília. No painel de que tomei parte, estava, entre outros, Fernando Gabeira. Éramos os únicos que não tinham vínculo com o partido e ao final, nós nos cumprimentamos, trocando elogios recíprocos às intervenções no seminário. Por coincidência, na mesma época, eu estava ministrando um curso de extensão na FAAP intitulado O cinema e a redemocratização do Brasil e da América Latina. Constituído de 12 filmes, em cada sessão eu abria fazendo uma contextualização, seguida da projeção do filme e, por fim, uma fase de debates para a qual eu sempre convidava um especialista no tema central do filme. A título de exemplo, um dos filmes do curso foi Zuzu Angel, em que a estilista foi brilhantemente protagonizada por Patrícia Pillar. Nessa sessão, o coordenador do curso de moda da Faculdade de Artes Plásticas da FAAP, Prof. Ivan Bismara, participou dos debates falando sobre a importância de Zuzu Angel na história da moda no Brasil.

Na semana seguinte ao seminário de Brasília, o programa do curso previa justamente a projeção de O que é isso, companheiro? Quando contei a Gabeira sobre o curso, ele elogiou a iniciativa. Perguntei se ele teria condições de comparecer à FAAP na semana seguinte para debater com os participantes, mas, infelizmente, por questões de agenda, isso não foi possível. Ficamos de marcar um encontro posterior, porém até hoje isso também não se concretizou.

Democracia tropical (Estação Brasil, 2017), tem como fio condutor as anotações de Fernando Gabeira a respeito do caminho percorrido pela democracia brasileira desde o movimento pelas eleições diretas para presidente da República até os dias de hoje. Nessas anotações, ilustradas com fotos dos episódios que estão sendo objeto da narrativa, Gabeira aparece como personagem da história, contando e refletindo sobre o que viu e viveu ao longo de sua trajetória como jornalista, ativista e político.

Em meio a esses apontamentos, o livro reproduz os artigos escritos por Gabeira sobre o processo de impeachment de Dilma Rousseff e sobre os momentos iniciais do governo de Michel Temer.

Logo no início, Gabeira retoma a questão da ameaça das ditaduras, tanto de esquerda como de direita, e afirma que essa constatação foi fundamental para que ele se apercebesse de aspectos essenciais para o futuro da humanidade, como o da destruição do meio ambiente.

Afastar-se das duas ditaduras que o século nos apresentava, da direita e da esquerda, significou para mim, finalmente, a posição correta, abriu-me os olhos para inúmeros outros fenômenos que a estreiteza política camuflava. Um deles, a destruição progressiva do planeta, a necessidade de deter ou, pelo menos, retardar esse processo.

Pouco depois, refletindo sobre alguns momentos vividos em sua ação parlamentar, Gabeira discorre sobre os debates que fazem parte do cotidiano do Congresso Nacional, que não raras vezes descambam para a ignorância em razão de posturas dogmáticas e fundamentalistas de alguns deputados que se consideram donos da verdade. Nesses, momentos, fica clara a resistência de Gabeira a essas posturas autoritárias e sua intransigente defesa da democracia, entendida como um processo de aprendizado e não como um ideal acabado.

De um lado estão os que defendem a livre circulação de ideias, o pluralismo, um intercâmbio que pede um constante trabalho de ajuste e diálogo para que seja mantido, mesmo no seu equilíbrio imperfeito.

De outro estão os que acham que o objetivo é a paz e a unidade futura, que eliminam disputas e adversários, buscando um fim racional, inscrito no que profetizam como o futuro inevitável.

Se colocarmos as duas visões num detector de romantismo, a segunda certamente vai movimentar os ponteiros. Uma coisa é a modéstia democrática de ajustar conflitos, de resolver questões na medida em que surjam. Isso não se compara à sensação de existir uma ordem ideal na vida humana e que podemos conquistá-la, ainda que por meios violentos, mesmo que tenhamos de deixar pelo caminho da terra prometida um grande número de mortos.

Reconhecer as limitações ou sonhar com o absoluto é uma luta que ainda se trava na cabeça de milhares de jovens. As limitações realmente existem e é impossível ignorá-las. Já o ideal perfeito, o paraíso na Terra, tem a vantagem de existir apenas na imaginação, livre dos desgastes cotidianos.

Embora analogias sejam perigosas, é um pouco como nos romances pessoais, em que se oscila, frequentemente, entre a pessoa real com quem se convive e outra maravilhosa que gostaríamos que existisse.

Na parte final do livro, Gabeira compartilha sua inquietação diante do cenário político brasileiro. Nessa hora, revela um apurado sentido da história, que “nunca recomeça do zero” e deixa aos leitores um convite à reflexão sobre as consequências – positivas e negativas – de um sistema político apodrecido, cuja corrupção endêmica está sendo escancarada pela Operação Lava Jato.

Mesmo que o surgimento de novos quadros seja grande, não será capaz de substituir tudo o que existe no sistema político arruinado. A história nunca recomeça do zero. Ela seria impensável sem continuidade. O sistema chegou ao seu fim com mortos e feridos. Será preciso aproveitar os feridos e ressuscitar alguns mortos por um curto tempo.

Por todas essas razões, recomendo vivamente a leitura de Democracia tropical a todos aqueles interessados em compreender e, quem sabe, contribuir para o aperfeiçoamento do País.

 

Referências bibliográficas

GABEIRA, Fernando. Onde está tudo aquilo agora? São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

_______________ Democracia tropical: caderno de um aprendiz. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2017.

Referências cinematográficas

Título: O que é isso, companheiro?
Direção: Bruno Barreto
Elenco: Alan Arkin, Fernanda Torres, Pedro Cardoso, Luis Fernando Guimarães, Cláudia Abreu, Matheus Natchergaele, Marco Ricca, Selton Mello, Alessandra Negrini, Du Moscovis, Milton Gonçalves, Othon Bastos, Fernanda Montenegro
Ano de produção: 1997
Duração: 105 min

Título: Zuzu Angel
Direção: Sergio Rezende
Elenco: Patrícia Pillar, Daniel de Oliveira, Luana Piovani, Alexandre Borges, Leandra Leal, Ângela Vieira, Flávio Bauraqui, Aramis Trindade, Othon Bastos
Ano de produção: 2006
Duração: 104 min