Lições de viagem

Uruguai

 

“Somos meio vagabundos, não gostamos tanto de trabalhar. (…) Ninguém morre por excesso de trabalho, mas não somos um país corrupto, somos um país decente.”

José “Pepe” Mujica

 

Inicio reafirmando o que já foi mencionado em outros artigos desta natureza. Acredito que viajar consiste numa das mais extraordinárias formas de aprendizado, independentemente do tipo de viagem que se realiza: negócios, lazer, estudos, convenções ou mesmo se para assistir a um jogo de futebol, como foi o caso desta minha última visita ao Uruguai, onde fui torcer pelo Palmeiras que jogou contra o Peñarol pela Copa Libertadores da América.

À parte a vitória épica do Verdão, numa memorável vitória por 3 a 2, depois de encerrar o primeiro tempo perdendo por 2 a 0, os três dias vividos no Uruguai na companhia de meu filho e de centenas de torcedores do Palmeiras, alguns dos quais assíduos frequentadores do Esporte Clube Pinheiros, foram repletos de bons momentos e de oportunidades de observação de um país que visito, por diferentes motivos, desde 1975. Nesse período, foram cinco visitas e em cada uma delas foi possível constatar características marcantes da terra e da gente do Uruguai.

Minha primeira visita ao Uruguai ocorreu em 1975, quando integrava a equipe principal de basquete do Esporte Clube Pinheiros. Ficamos por aproximadamente uma semana, realizando três jogos em Montevidéu e um em Maldonado, nas imediações de Punta del Este. Enquanto o Brasil vivia os anos finais de mais de um século com elevado crescimento econômico[1], o Uruguai amargava um prolongado ciclo de dificuldades, depois de ter atingido elevado padrão de desenvolvimento na primeira metade do século XX, quando chegou a ser apontado, talvez com certo exagero, como a Suíça da América do Sul.

Com 20 anos na época, o Uruguai era o 17º país que eu tinha oportunidade de conhecer e, apesar da inexperiência típica da idade, pude observar algumas coisas que ficaram para sempre registradas em minha memória. A primeira – e mais forte – dessas recordações tinha a ver com o nível médio de educação do povo uruguaio, fato que foi acentuado no primeiro táxi que usei naquela viagem. O motorista, um senhor de 50/60 anos de idade, deu uma verdadeira aula, falando com propriedade sobre a história do Uruguai, com ênfase na situação então vigente, em que o país vivia sob um governo militar que enfrentava sérios problemas com a subversão, da qual o grupo mais conhecido era conhecido pelo nome de Tupamaros. Um ano antes, em viagem à Inglaterra, eu havia assistido ao filme Estado de sítio, do genial Costa Gravas, que era filmado no Uruguai e que mostrava os graves embates entre os terroristas e os grupos de repressão. Provavelmente por ter assistido a esse filme, fiquei ainda mais impressionado com o relato do motorista. Além de seu conhecimento, me chamaram a atenção a educação e a cultura geral daquele senhor.  Outra coisa que ficou gravada na minha lembrança dessa viagem foi a pequena quantidade de jovens nas ruas, frequentadas predominantemente por velhos e crianças. Foi-me dito que isso se explicava, em grande parte, pelo êxodo de jovens que, desesperançados com a situação político-econômica do país, buscavam melhores e maiores oportunidades no exterior.

Só voltei a visitar o Uruguai em 1998, não estando no país, portanto, na década de 1980, conhecida na América Latina como a década perdida. Como se vê na tabela 1, o Uruguai, a exemplo da maior parte dos países do continente, teve um desempenho decepcionante ao longo da década, com uma redução de 7,1% do crescimento do PIB por habitante.

Tabela 1: A Década Perdida

 

1981 – 1989

Crescimento do PIB por Habitante

América Latina* (8,3) Chile 9,6
Bolivia (26,6) Haiti (18,6)
Equador (1,1) Honduras (12,0)
México (9,2) Nicarágua (33,1)
Peru (24,7) Panamá (17,2)
Venezuela (24,9) Paraguai 0,0
Argentina (23,5) Rep. Dominicana 2,0
Brasil (0,4) Uruguai (7,2)
Colômbia 13,9 Guatemala (18,2)
Costa Rica (6,1) El Salvador (17,4)

Reproduzida do livro Qual Democracia?, de Francisco Weffort, p. 67.

(*) O índice geral, elaborado pela CEPAL, inclui todos os países latino-americanos,

não apenas os aqui listados. Não considera os dados de Cuba porque

o conceito de produto social é diferente dos demais.

 

Antes de seguir adiante, faço questão de alertar para o fato de que a denominação “década perdida” é mais justificada se considerarmos a perspectiva econômica. Afinal, como mostra a tabela 1, cada cidadão latino-americano saiu da década 8,3% mais pobre do que entrou nela, com apenas três países registrando desempenho positivo, Colômbia, Chile e República Dominicana. Sob a perspectiva política, porém, a expressão “década perdida” é inadequada, uma vez que foi nessa década que boa parte dos países fizeram a transição para a democracia, depois de um período – maior ou menor – vivendo sob regimes autoritários. Foi o que aconteceu com o Brasil, cujo ciclo autoritário estendeu-se de 31 de março de 1964 a 15 de março de 1985, e também com o Uruguai, cujo ciclo foi de 27 de junho de 1973 até 28 de fevereiro de 1985.

Minha segunda visita ao Uruguai, em 1998, foi muito rápida, tendo duração de quatro dias apenas. Porém, nessa visita, tive a chance de conhecer, por algumas horas, a cidade de Colonia del Sacramento. Deixei-a com a forte sensação de “quero mais”.

No ano seguinte voltei ao Uruguai, desta vez por aproximadamente 10 dias, para participar do Campeonato Mundial de Basquete Master. Foi um privilégio passar esse período na companhia de jogadores de diferentes gerações, muitos dos quais verdadeiros ídolos, de mais de uma dezena de países. Nesses campeonatos, as seleções são divididas por intervalos de cinco anos, com equipes que vão de 35 a 70 anos. Apesar dos compromissos relacionados a treinos e jogos, foi possível desfrutar de algumas atrações da capital, com destaque para a culinária local, em que se sobressaem as famosas parrillas. Jamais esquecerei o dia de descanso geral do campeonato, quando a maior parte das delegações reuniu-se para um incrível almoço nos restaurantes espalhados pelo Mercado do Porto. Nessa época, o país vivia um processo de recuperação econômica, porém os sintomas da longa recessão continuavam muito visíveis.

Voltei com minha família ao Uruguai em 2005, ocasião em que pude dar à minha mulher e meu filho a oportunidade de conhecerem Colonia del Sacramento e Punta del Este, apenas passando por Montevidéu na ida de uma à outra cidade. Repetiu-se o encanto com Colonia del Sacramento, que muitos brasileiros associam a Parati e, que, a exemplo da cidade do litoral sul do Rio de Janeiro, possui rica arquitetura colonial e um charme especial. Punta del Este, como não poderia deixar de ser, foi também muito apreciada, embora tenhamos estado lá em julho, quando a cidade é muito diferente dos meses de janeiro e fevereiro, quando se transforma num dos mais badalados redutos do verão sul-americano. Estivemos durante praticamente todo o tempo em localidades tipicamente turísticas, sendo assim, ficou difícil sentir o “pulso” da economia, pois como em qualquer país, a rotina das cidades turísticas tem a marca da artificialidade e, não raras vezes, de preços elevados.

Nesta última visita ao Uruguai, a sensação que ficou foi extremamente favorável. A situação política está tranquila, com pleno funcionamento das instituições democráticas e real possibilidade de alternância no poder. A economia também se encontra estabilizada e, apesar do impacto negativo causado pela recessão brasileira, registrou crescimento positivo nos dois últimos anos, 1% em 2015 e 1,5% em 2016. Essa estabilidade da economia e da política do Uruguai contrasta flagrantemente com a confusa conjuntura vivida pelo Brasil. Algumas consequências diretas deste contraste: as pessoas sentem uma segurança muito grande para circular pelas ruas e avenidas da capital, surgiram inúmeros bares e restaurantes, além de lojas, com considerável movimento, a cidade está limpa e organizada e quase não se percebem sinais aparentes de pobreza, como, lamentavelmente, ocorre atualmente em muitas capitais brasileiras, a começar por São Paulo.

Não há como negar que pelo menos um pouco da sensação amplamente favorável desta recente estada em Montevidéu deveu-se à emocionante virada conseguida pelo Palmeiras.

Torcida que canta e vibra Por nosso alviverde inteiro Que sabe ser brasileiro Ostentando a sua fibra.

Deveu-se, também, à oportunidade de convívio com parte de sua torcida, em especial os amigos de meu filho: Ivan Picolé, Ratto, Bruninho Ceará, Nando, Flávio, Ciro, Alezão, Turcão e Arquimedes. Para um sexagenário, conviver com essa garotada foi motivo de grande alegria… e muitas risadas.

 

 

 

Referências bibliográficas

 

MADDISON, Angus – Desempenho da Economia Mundial desde 1870 – em Norman Gall… et al. – Nova Era da Economia Mundial – Pioneira/Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial

 WEFFORT, Francisco. Qual democracia? São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

Referência cinematográfica

 Título: Estado de Sítio Título Original: État de Siege Direção: Costa-Gavras Elenco: Yves Montand, Jacques Weber, Renato Salvatori…

Ano de produção: 1973; Duração: 119 minutos.

 

[1] De acordo com Angus Maddison, um dos mais respeitados analistas internacionais de ciclos longos de desenvolvimento, o Brasil foi o país com melhor desempenho de 1870 a 1986 numa amostra que considerava, além dele, Estados Unidos, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Rússia, China, Índia e México.