Venezuela: longo processo de deterioração[1]

 

Uma das características da economia globalizada em que vivemos diz respeito ao fim das distâncias, título do livro escrito pela editora-chefe da revista The Economist, Frances Cairncross. Graças a essa característica, qualquer lugar do mundo torna-se acessível, num curto período de tempo e por um preço relativamente baixo.

Nem sempre as coisas foram assim. Até o início da segunda metade do século passado, viajar para o exterior era considerado um luxo, possível apenas para uma minoria privilegiada.

No Brasil, mesmo integrantes dessa minoria privilegiada iam raramente ao exterior e o destino mais procurado era Buenos Aires. Afinal, a Argentina havia atingido elevado nível de desenvolvimento ao final da primeira metade do século, com um padrão de vida superior, inclusive, ao observado em alguns países do sul da Europa.

As décadas de 1960 e 1970 testemunharam um profundo retrocesso da economia argentina e, paralelamente, a ascensão de alguns países da América do Sul, em especial o Brasil, que viveu de 1968 a 1973 um período que ficou conhecido como o do “milagre econômico”, com o País crescendo a taxas médias anuais em torno de 10%. Também cresceram em bom ritmo nessa época países como Peru e Venezuela.

A reversão ocorreu na década seguinte, que se tornou conhecida na região como década perdida (Tabela 1), durante a qual apenas três países da região obtiveram desempenho positivo, República Dominicana, Chile e Colômbia.

Tabela 1: A Década Perdida 

1981 – 1989

Crescimento do PIB por Habitante

América Latina* (8,3) Chile 9,6
Bolivia (26,6) Haiti (18,6)
Equador (1,1) Honduras (12,0)
México (9,2) Nicarágua (33,1)
Peru (24,7) Panamá (17,2)
Venezuela (24,9) Paraguai 0,0
Argentina (23,5) Rep. Dominicana 2,0
Brasil (0,4) Uruguai (7,2)
Colômbia 13,9 Guatemala (18,2)
Costa Rica (6,1) El Salvador (17,4)

Reproduzida do livro Qual Democracia?, de Francisco Weffort, p. 67.

(*) O índice geral, elaborado pela CEPAL, inclui todos os países latino-americanos, não apenas os aqui listados. Não considera os dados de Cuba porque o conceito de produto social é diferente dos demais.

Quem teve oportunidade de viajar à Venezuela a partir da metade da década de 1950 ficou, muito provavelmente, impressionado com a primeira experiência proporcionada ao visitante. Verdadeiro cartão de visita da Venezuela, a estrada Caracas-La Guaira liga o Aeroporto de Maiquetia (oficialmente chamado de Simón Bolivar) à capital venezuelana. Com quase 17 km de extensão, foi inaugurada em 1953, sendo considerada a obra de engenharia mais importante realizada na América Latina depois do Canal do Panamá.  Era, então, disparadamente a melhor estrada do continente, com várias pistas, longos túneis, viadutos e leito carroçável impecável.

Tal motivo de orgulho para os venezuelanos perdurou por alguns anos, mas, à medida que o tempo ia passando, cada vez mais ela se constituía numa exceção. Uma ilha de excelência cercada por cenas de flagrante pobreza e acentuada desigualdade. Com o passar dos anos, no entanto, até essa ilha de excelência desapareceu, dando lugar a uma autopista completamente deteriorada, sem manutenção e com trechos interditados em função de desabamentos e do risco oferecido aos que nela trafegavam.

Sendo um dos grandes produtores de petróleo, a Venezuela teve sua economia fortemente dependente desse produto e o que se pôde observar por décadas e décadas foi a má distribuição da renda do petróleo, com a apropriação da maior parte dessa renda por uma parcela mínima da sociedade. Nos anos em que esteve à frente do governo, Hugo Chávez não conseguiu com seu Socialismo do Século 21 alterar esse panorama e a Venezuela continuou a ser uma economia rentista de petróleo. O que mudou é que a partir do governo de Chávez uma camada mais ampla passou a se apropriar da maior parcela dessa renda.

Isso explica a vitória de Nicolás Maduro nas eleições que se seguiram à morte de Hugo Chávez.  Concorrendo como continuador do governo chavista, embora longe de possuir o carisma de seu inspirador, Maduro teve o apoio da parte da população do país que, até o advento Chávez, foi sempre esquecida e marginalizada.

De lá para cá, entretanto, as condições econômicas se agravaram muito, com escassez quase generalizada de produtos, levando a uma profunda crise política e social, que culminou com a intermediação do próprio Vaticano.

O serviço diplomático da Santa Sé existe há mais de um milênio. Sob o Papa Francisco, o Vaticano já intermediou, por exemplo, o restabelecimento de relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos.

A diplomacia vaticana tem se referido à conjuntura venezuelana como “preocupante”. Em recente encontro privado com o presidente Maduro, o Papa Francisco disse querer contribuir para a estabilidade institucional do país e para criar confiança entre as partes em conflito.

Apesar da intervenção do Vaticano, o clima permanece extremamente tenso e, dadas as péssimas condições de vida hoje observadas, também vemos com enorme preocupação o futuro imediato da Venezuela. Acompanhando a prolongada agonia do povo venezuelano, só nos resta fazer eco ao alerta do jornalista Norman Gall, diretor executivo do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial: “A Venezuela serve de advertência para o resto da América Latina quanto aos custos da degradação e falência das instituições públicas”.

 

Referências bibliográficas e webgráficas

CIRNCROSS, Frances. O fim das distâncias: como a revolução nas comunicações transformará nossas vidas. Tradução de Edite Sciulli e Marcos T. Rubino. São Paulo: Nobel, 2000.

GALL, Norman. Petróleo e democracia na Venezuela. Braudel Papers 40 e 41. Disponiveis em http://pt.braudel.org.br/publicacoes/braudel-papers/40.phpe http://pt.braudel.org.br/publicacoes/braudel-papers/41.php

WEFFORT, Francisco. Qual democracia? São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

 

[1] Escrito em parceria com Rogério Schmitt, cientista político e colaborador do Espaço Democrático.