100 dias e nada a comemorar

 Dilema, impasse, trade-off ou, simplesmente, escolha?

 “Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.”

(Provérbio da língua portuguesa, utilizado como refrão da música

“Homem com H”, interpretada por Ney Matogrosso)

Se correr o bicho pega...

O segundo mandato da presidente Dilma Rousseff completa 100 dias numa situação bem diferente da verificada quando de seu primeiro mandato. Naquela ocasião, como costuma ocorrer nos momentos que se seguem a uma vitória em processo eleitoral, ela dispunha de um elevado cacife político, tinha alto grau de confiança de ampla parcela da população e o índice de aprovação de seu governo – ainda em seus momentos iniciais – refletia isso.

O que se observa atualmente é um quadro completamente distinto, com uma sucessão infindável de notícias negativas, numa perversa combinação de problemas tanto na área econômica como na política.

Como minha seara é a área econômica, é ela que vou priorizar em minha análise.

A meu juízo, o maior problema enfrentado pelo governo da presidente Dilma Rousseff reside em algo que é bastante familiar para economistas que representam dignamente a profissão que escolheram: a necessidade de tomar decisões, quase sempre extremamente difíceis.

Considerando que ao economista cabe a dura tarefa de propor a melhor alocação possível de recursos escassos para satisfazer necessidades que não têm nada de escassas, tomar decisões faz parte do dia-a-dia da profissão. E, quem não quiser se defrontar com essa situação, não pode e não deve abraçar essa profissão.

Escolhi, propositalmente, as expressões recursos escassos e necessidades nada escassas no parágrafo anterior, pois é exatamente sobre a questão da escassez que vou insistir.

Uma das definições mais comuns – e, talvez, menos indicadas – da economia é aquela que diz que “é a ciência da escassez”.

Por que menos indicada?

Por uma simples razão: o conceito de escassez embutido na referida definição é um conceito relativo, ou seja, que considera, de um lado, a escassez dos recursos ou fatores de produção (terra, capital e trabalho), e, de outro, as necessidades humanas que, em vez de escassas, são ilimitadas. Se o interlocutor não tiver conhecimento dessa relação, por mais que aparente entender a definição, não terá uma compreensão adequada do seu alcance.

Logo, a equação com que se defronta o economista na sua atividade diária, quer seja exercida no plano micro, quer no macroeconômico, é uma equação que “não fecha”, uma vez que é impossível atender as necessidades ilimitadas das pessoas o tempo todo dispondo apenas de recursos limitados. O que muda é apenas o grau de complexidade da decisão.

Portanto, cabe ao economista a impopular tarefa de dizer “não” aos devaneios dos agentes, sejam estes indivíduos, empresas, organizações, municípios, estados ou países.

É claro que, quando nos referimos às tomadas de decisões de um país, a complexidade é muito maior do que quando nos referimos à tomada de decisão de um indivíduo ou de uma família, embora as consequências por decisões erradas possam ser igualmente ruinosas.

Voltando à realidade existente hoje em nosso país, defrontamo-nos com uma escolha extremamente complicada, pois se existe a inadiável necessidade de “pôr ordem na casa”, buscando ajustar as contas públicas que foram tratadas com absoluto descaso nos últimos anos, existe também a necessidade de retomar o crescimento econômico num ritmo próximo ao do potencial da economia brasileira, uma vez que o nível de desemprego, que até recentemente funcionou como uma espécie de colchão, começa a dar claros sinais de expansão.

Estamos, portanto, diante de uma situação que alguns chamam de impasse. Outros de dilema. Outros ainda de escolha, com ou sem adjetivos. E que muitos economistas preferem chamar de trade-off.

Cabe aqui uma sutil ironia da ex-primeira-ministra Margaret Thatcher: “Pessoas normais viajam numa estrada; economistas viajam numa infraestrutura”.

Em seu consagrado Dicionário de economia do século XXI, Paulo Sandroni assim define a expressão trade-off:

TRADE-OFF. Em economia, expressão que define situação de escolha conflitante, isto é, quando uma ação econômica que visa à resolução de determinado problema acarreta, inevitavelmente, outros. Por exemplo, de acordo com as concepções keynesianas modernas, em determinadas circunstâncias a redução da taxa de desemprego apenas poderá ser obtida com o aumento da taxa de inflação, existindo, um trade-off entre inflação e desemprego.

O embaixador Rubens Ricupero, refutando o falso dilema entre inserir-se ou não no processo de globalização, brinda-nos com uma ótima explicação:

Justifica-se, aqui, o uso da palavra “dilema” no sentido figurado que lhe dá o Aurélio, de “situação embaraçosa com duas saídas difíceis ou penosas”. Com efeito, dizem-nos que não temos escolha, e o caminho é um só e obrigatório. Ao tentar segui-lo, por outro lado, descobrimos que ele é estreito e escabroso, que não conseguimos avançar sem cair muitas vezes. Pior: suspeitamos de que, no passado, ele nos desviou do rumo certo, conduzindo-nos a atoleiros de que até agora tentamos sair.

Já Eduardo Giannetti, em seu fabuloso ensaio sobre a natureza dos juros, O valor do amanhã, enfatiza as trocas ou escolhas intertemporais, que podem ser assim sintetizadas: “antecipar custa, retardar rende”.

Explicando mais detalhadamente:

A escolha intertemporal é uma visão de mão dupla: antecipar ou retardar? Importar valores do futuro para desfrute imediato (posição devedora) ou remover valores do presente para desfrute futuro (posição credora)? Se as escolhas do presente determinam em larga medida o nosso futuro, o futuro sonhado determina, ao menos em parte, as escolhas que fazemos no presente.

Enquanto a explicação de Sandroni reflete bem alguns dos dilemas da política econômica realçando contradições que envolvem acelerar ou frear a economia, a de Giannetti contrapõe a necessidade, imposta pela escassez de recursos, de antecipar ou postergar despesas e investimentos.

Seria muito bom, porém, se o problema das escolhas acabasse por aí. Mas não é isso que ocorre na realidade. Há uma infinidade de outras escolhas que precisam ser feitas e, para cada uma delas, é preciso um apurado exame de custo-benefício, do qual poderão resultar decisões do tipo “este ou aquele” ou, às vezes, “um pouco deste e um pouco daquele”. É o caso da queda de braços que se verifica em discussões envolvendo empregadores e trabalhadores ou representantes de diferentes segmentos de atividades econômicas. Cada um se sente o senhor da razão, levando sempre em consideração os interesses dos grupos, classes, categorias ou segmentos que representam.

Jorge Arbache, professor da Universidade de Brasília, publicou um excelente artigo intitulado Indústria ou serviços? focalizando exatamente um desses contrapontos.

Caminhando para a conclusão, uma aparente contradição. Afirmei de início, que minha seara era a economia e que ela é que seria priorizada em minha análise. Foi o que procurei fazer até aqui.

Entretanto, há ainda um enorme agravante para esse quadro já difícil enfrentado pela nossa economia. E ele envolve a política.

Muitas das decisões, que já não são fáceis de serem tomadas em função das restrições de ordem econômica – escassez de recursos financeiros, mão-de-obra qualificada, tecnologia ou mesmo de tempo –, dependem de intrincadas articulações políticas por envolverem ora grupos diferentes de interesses, ora negociações entre os três poderes da República, em especial o Executivo e o Legislativo.

Aí é que a coisa se complica ainda mais, pois nesses primeiros 100 dias, Dilma Rousseff deu verdadeiras lições de como não exercer a liderança.

Tanto é verdade que chegamos a essa marca com uma situação que é, no mínimo, estranha: a presidente da República, que, teoricamente, deveria comandar o processo, abdicou do comando das negociações econômicas, deixando-as a cargo do ministro da Fazenda Joaquim Levy, e do comando das articulações políticas, deixando-as com o vice-presidente Michel Temer.

Onde é que isso vai dar?

 

Iscas para ir mais fundo no assunto

Referências e indicações bibliográficas

ARBACHE, Jorge. Indústria ou serviços? Valor Econômico, 1 de abril de 2015, p. A 15.

DILMA em nova enrascada. O Estado de S. Paulo, 9 de abril de 2015, p. A 3.

DUAILIBI, Roberto. Duailibi das citações. 5ª edição. São Paulo: Arx, 2004.

FRAGA, Armínio. Ajuste está aquém do necessário. Entrevista a Claudia Safatle e Alex Ribeiro. Valor Econômico, 19 de março de 2015, p. A 14.

GIANNETTI, Eduardo. O valor do amanhã: ensaio sobre a natureza dos juros. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. São Paulo: Editora SENAC, 2001.

SAFATLE, Claudia. Governo espera antecipar volta do crescimento. Valor Econômico, 31 de março de 2015, pp. A 1 e A 3.

SANDRONI, Paulo. Dicionário de economia do século XXI. Rio de Janeiro: Record, 2005.

Referências e indicações webgráficas

COFECON. Crescimento econômico do Brasil deve ser imediatamente retomado. Disponível em http://www.cofecon.org.br/destaques/204-slideshow-principal/3069-nota-do-cofecon-sobre-o-resultado-do-pib-e-o-ajuste-fiscal.html.

Referência musical

Homem com H. Letra e música de Ney Matogrosso. Disponível em http://www.vagalume.com.br/ney-matogrosso/homem-com-h.html.