Economia e educação III

 

Educação ideologizada

 

“Ao mesmo tempo em que são incompetentes e

 doutrinárias no ensino da ética, nossas escolas

são antiéticas em sua prática.”

Gustavo Ioschpe

 

A relação da economia com a educação vem sendo, há muito, tema de preocupação de diversos economistas, estrangeiros e brasileiros. Sem maior esforço de memória, cito entre eles Alfred Marshall, o grande nome da escola neoclássica no fim do século XIX, os ganhadores do Nobel de Economia, Theodore Schultz, Gary Becker e James Heckman, o ex-ministro e atual secretário da Educação do Estado de São Paulo, Paulo Renato de Souza, e os professores Eduardo Giannetti, Ricardo Paes de Barros e Claudio de Moura Castro, este último responsável por uma coluna quinzenal sobre o tema na revista Veja.

É claro que a preocupação com a educação não é privilégio de economistas. Ao contrário, muita gente boa compartilha dessa preocupação, reconhecendo residir aí um dos grandes obstáculos para que o Brasil consiga se transformar definitivamente num país desenvolvido.

Num livro publicado em 2001, Rubens Ricupero, que entre outros cargos de destaque foi secretário-geral da UNCTAD, o órgão das Nações Unidas voltado às questões de comércio e desenvolvimento, ministro da Amazônia e do Meio Ambiente, ministro da Fazenda, e embaixador na Itália e nos Estados Unidos, aponta como questões estruturais que precisam ser corajosamente enfrentadas para que o Brasil supere os obstáculos que o mantêm indefinidamente como país em desenvolvimento (ou emergente): 1º) o combate à pobreza e à desigualdade;  e 2º) a prioridade à educação e ao conhecimento.

Chamo a atenção desse segundo fator e, particularmente, à conexão que o embaixador estabelece entre educação e conhecimento. Isto, que para muitos pode parecer uma redundância, é extremamente importante. Num mundo com as características deste em que vivemos, no qual as mudanças ocorrem num ritmo frenético, levando o conhecimento a um rápido processo de obsolescência, não basta simplesmente se preocupar em educar as pessoas, mas também com o tipo de educação que será oferecido. Caso contrário, haverá sempre o risco de um país apresentar indicadores elevados de universalização do ensino, sem, no entanto, gerar pessoas aptas a enfrentar os desafios do mundo contemporâneo, em especial no que se refere à capacidade de atender as demandas de suas populações permanentemente ávidas por bens e serviços de qualidade.

É exatamente nesse aspecto que me chamou a atenção o artigo Aula de ética é em casa, não na escola, de autoria de Gustavo Ioschpe, publicado esta semana pela revista Veja.  Nele, o autor alerta para um intenso processo de ideologização do ensino em curso em nosso país, em que os atuais responsáveis pela política educacional estão fazendo exatamente aquilo que condenavam quando, no poder, os militares promoviam a doutrinação dos estudantes sob a forma de disciplinas intituladas Organização Social e Política do Brasil (OSPB), Educação Moral e Cívica (EMC) e Estudo dos Problemas Brasileiros (EPB). Para cada nível educacional, um nome diferente, para um mesmo objetivo.

Como assinala Ioschpe, o que está ocorrendo atualmente não é muito diferente. Sob a crítica – aberta ou velada – ao “conteudismo”, nossas autoridades recomendam que dois temas sejam abordados em todas as disciplinas, da matemática à geografia, passando pelo português, pela história e pelas ciências: cidadania e ética.

Seu depoimento é revelador:

Estou começando a procurar escola para o meu filho, e fico impressionado com o que tenho ouvido e lido a respeito das escolas que procuro. Ouve-se falar pouco no desenvolvimento cognitivo, em aprendizagem, em ciências exatas. Menos ainda alguém se referindo à pesquisa empírica ou aos recentes achados de neurociência. Em compensação, dois temas são unanimidade; cidadania e ética. É uma distorção que me preocupa.

Ao longo do referido artigo, Ioschpe destaca outros pontos que merecem a reflexão de todos os que reconhecem a importância do tema, entre os quais o já conhecido fraquíssimo desempenho dos alunos brasileiros nos testes internacionais que comparam qualidade de ensino e a recente descoberta por duas pesquisadoras portuguesas da relação direta entre a desonestidade em sala de aula e o índice de corrupção no país, algo alarmante quando se sabe que vigora no Brasil um acordo tácito entre maus professores e maus alunos, os primeiros fazendo vistas grossas e os segundos consagrando a expressão “quem não cola, não sai da escola”.

Ao concluir a leitura do artigo de Gustavo Ioschpe (que recomendo vigorosamente), vieram-me imediatamente à cabeça, duas sátiras. A primeira, intitulada O relatório de Mr. Saturnino, é um ensaio escrito tempos atrás por Claudio de Moura Castro como uma sátira dos gurus da nossa educação, com uma série de frases transcritas ipsis literis de um documento real preparado para justificar a criação de uma escola. A segunda, ridicularizando os modismos que de tempos em tempos surgem como a solução mágica de todos os problemas da educação, é intitulada A evolução do ensino através de um problema de matemática.

Como a primeira é muito extensa para ser aqui reproduzida[1], encerro o presente artigo com a segunda.

A evolução do ensino através de

um problema de matemática

Ensino de 1960:

Um sitiante vende um saco de batatas por 100. Suas despesas de produção equivalem a 4/5 do preço de venda. Qual é o seu lucro?

Ensino tradicional de 1970:

Um sitiante vende um saco de batatas por 100. Suas despesas se produção se elevam a 4/5 do preço, ou seja, 80. Qual é seu lucro?

Ensino moderno de 1970:

Um sitiante troca um conjunto B de batatas por um conjunto M de moedas. O cardinal do conjunto M é igual a 100 e cada elemento vale 1. Desenhe 100 grossos pontos representando o conjunto M. O conjunto D das despesas de produção compreende 20 grossos pontos menos que o conjunto M. Represente o conjunto D como um subconjunto de M e dê a resposta à seguinte questão:

Apêndice: Qual é o cardinal do conjunto L dos lucros? (a desenhar em azul)

Ensino renovado de 1980:

Um agricultor vende um saco de batatas por 100. As despesas de produção se elevam a 80 e o lucro é de 20. Dever: Sublinhe a palavra “batatas” e discuta com seu vizinho.

Ensino progressista de 1990:

Um citianti capitalista cheiu dus privilegiu inriqueci injustamenti 20 cum sacu di batata. Analizá u testo i procurá us erro di conteudu, di gamatica i di otorgrafia i dispois falá u que voce axa dessi modu dinriquecê.

Ensino com computador de 1990:

Um produtor do espaço agrícola on line acessa um link de um data bank que faz um download de alta resolução do day rate da batata. Através de um hiperlink ele pode calcular o cash flow. Importe, clicando o mouse, o GIF de uma saco de batatas e formate para imprimir na Laserjet.

Ensino do ano 2000:

O que é um camponês?

Referências e indicações bibliográficas

CASTRO, Claudio de Moura. Crônicas de uma educação vacilante. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.

_______________ O relatório de Mr. Saturnino. Mimeo., s/d.

CASTRO, Maria Helena Guimarães de. A educação no Brasil: o desafio da qualidade e da equidade. Revista de Economia & Relações Internacionais, volume 5, edição especial, 2006, pp. 162 – 189.

DRÜGG, Kátia Issa e ORTIZ, Dayse Domene. O desafio da educação: a qualidade total. São Paulo: Makron Books, 1994.

FERREIRA, Francisco H. G., VELEZ, Carlos Eduardo e BARROS, Ricardo Paes de. Inequality and economic development in Brazil. New York, NY: World Bank, 2005.

GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Liberalismo X Pobreza. São Paulo: Inconfidentes, 1989.

______________ O ciclo da pobreza e da incompetência. Folha de S. Paulo, 19/12/93. Reproduzido em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 71 – 73.

______________ Mitos e desafios da política educacional. Folha de S. Paulo, 11/9/94. Reproduzido em As partes & o todo. São Paulo: Siciliano, 1995, pp. 89 – 91.

GUILLON, Antonio Bias Bueno e MIRSHAWKA, Victor. Reeducação: qualidade, produtividade e criatividade: caminho para a escola excelente do século XXI. São Paulo: Makron Books, 1994.

IOSCHPE, Gustavo. Aula de ética é em casa, não na escola. Veja, edição 2171, ano 43, nº 26, 30 de junho de 2010, pp. 120 – 121.

MARSHALL, Alfred. Princípios de economia: tratado introdutório. Tradução revista de Rômulo de Almeida e Ottolmy Strauch. Introdução de Ottolmy Strauch. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Os Economistas)

RICUPERO, Rubens. O Brasil e o dilema da globalização. São Paulo: SENAC, 2001.

SCHULTZ, Theodore W. O valor econômico da educação. Tradução de P. S. Werneck. Revisão técnica de Calógeras A. Pajuaba. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

______________ O capital humano: investimentos em educação e pesquisa. Tradução de Marco Aurélio de Moura Matos. Revisão técnica de Ricardo Tolipan. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

______________ Investindo no povo: o segredo econômico da qualidade da população. Tradução de Elcio Gomes de Cerqueira. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.

SENGE, Peter et al. Escolas que aprendem: um guia da Quinta Disciplina para educadores, pais e todos que se interessam pela educação. Tradução de Ronaldo Cataldo Costa. Porto Alegre: Artmed, 2005.

VASCONCELLOS, Anna de. Ensino ideológico. São Paulo: Agência Planalto, 1981.

Referências e indicações webgráficas

CARVALHO, José L. Liberdade para ensinar e para competir. Disponível em http://www.institutoliberal.org.br/comentario.asp.

MACHADO, Luiz Alberto. Economia e educação I – Aula de dois mil réis. Disponível em http://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-antigas.

_______________ Economia e educação II – Investimento de elevado retorno. Disponível em http://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-antigas.

_______________ Grandes Economistas XVI – Alfred Marshall e a Escola Neoclássica. Disponível em http://www.portalcafebrasil.com.br/iscas-antigas

[1] Se algum internauta tiver interesse no texto de Claudio de Moura Castro, basta me solicitar pelo e-mail luizalberto.machado@bol.com.br.