O Ano do Galo

 

Verdades sobre a China

 

“E com os anos, a não ser a China,

tudo na terra passa…”

Eça de Queirós

 

Uma coisa que sempre me deixou encucado é que sempre que lia algum livro sobre Rússia, Cuba ou China, tinha muita dificuldade em saber no que acreditar, pois na maior parte das vezes os autores eram ou apaixonados por esses países e só escreviam maravilhas a respeito dos mesmos, ou os detestavam, só escrevendo coisas ruins sobre eles.

Por sorte, tive chance de conhecer os dois primeiros: a Rússia em 1972, em plena era Brejnev, e Cuba em 1999, com Fidel ainda em pleno comando. Ao visitar esses dois países, mesmo que por pouco tempo, pude confrontar a realidade com as informações adquiridas nos livros e, a partir daí, chegar às minhas próprias conclusões.

Já a China eu não tive – ainda – oportunidade de conhecer. Portanto, minhas informações limitam-se às leituras de minha juventude – Henfil na China e O Oriente é vermelho – além de palestras, filmes e notícias publicadas nos mais diferentes jornais e revistas.

Com o espetacular crescimento econômico que o país vem experimentando há várias décadas (10,5% em 1995, 9,6% em 1996, 8,8% em 1997, 7,8% em 1998, 7,1% em 1999, 8,0% em 2000, 7,3% em 2001, 8,3% em 2002 e 9,3% em 2003, segundo Medeiros), o volume de informações sobre a China cresceu exponencialmente, porém a maior parte dos dados divulgados dizem respeito aos aspectos econômicos e comerciais, ficando num segundo plano os aspectos políticos e sociais.

Nesse sentido, foi com grande interesse que assisti à palestra de Guy Sorman e, posteriormente, li o livro O ano do Galo: Verdades sobre a China, de sua autoria, recém lançado no Brasil. Ele, aliás, confirma minha desconfiança a respeito do que é publicado sobre a China:

Os especialistas da China na realidade são ou crédulos ou incrédulos: o crédulo garante que tudo irá cada vez melhor; o incrédulo objeta dizendo que nada muda de fato. Tanto uns quanto outros, os que acreditam na China e os que não acreditam , têm as mesmas informações, dispersas e não verificáveis, e limitam-se a pintar essas informações de rosa ou de negro. É raro encontrar um especialista que fica na nuance: a paixão pela China não se divide, e quando se crê, não se conta.

Tendo visitado seguidamente a China desde 1967, Sorman passou lá todo o ano de 2005, que foi o Ano do Galo, além de uma parte de 2006 e de 2007. Dessa forma, tentou entender melhor não apenas a estratégia econômica chinesa, mas também como a sociedade local vê essa estratégia e o papel do Partido Comunista na condução dessa estratégia. Para tanto, optou por passar a maior parte desse tempo fora dos grandes centros, no que ele chama de “verdadeira China”:

…é possível penetrar na verdadeira China, contanto que se tenha a paciência e a perseverança necessárias. Passei todo o ano de 2005 e uma parte de 2006 e 2007 viajando pelo interior, explorando suas inúmeras cidades, descobrindo seus lugares mais remotos, onde poucos ocidentais ousam se aventurar. Não pretendo conhecer toda a China, uma tarefa demasiadamente ambiciosa. Simplesmente quis registrar palavras e impressões de alguns homens e mulheres excepcionais da China que sofrem em silêncio, levantando a sua voz sempre que podem para pedir uma nação livre.

Sua principal constatação lá vivendo é que existem basicamente duas Chinas: uma é a China que nós conhecemos, veiculada nos órgãos de imprensa do mundo todo, que corresponde a uma nação que cresce a taxas elevadas e que possui grandes metrópoles, com destaque para Pequim e Xangai, e que compreende aproximadamente 200 milhões de habitantes; a outra China, que compreende mais de um bilhão de pessoas, é de moradores de zonas rurais, que vivem em condições muito difíceis, produzindo apenas para sua própria subsistência e trabalhando sob forte regime de exploração.

O Partido Comunista mantém essa estrutura claramente diferenciada com mão-de-ferro, única forma, segundo Sorman, de manter sob controle um país com tamanhas desigualdades e que combina uma economia com razoável grau de abertura com um regime político ainda totalmente fechado e imune a qualquer anseio maior de democracia.

Diferentemente da Índia, onde existe pobreza mas também liberdade e respeito a direitos individuais, na China a esmagadora maioria da população além de ser pobre, não possui liberdade política, direito de associação, liberdade religiosa, liberdade de viajar (a não ser em situações muito especiais). Não há também liberdade de imprensa, o que significa que o acesso à informação é restrito e totalmente controlado pelo partido dominante. O controle e a manipulação das informações são alguns dos aspectos mais interessantes do livro e revelam quão próxima a China atual encontra-se do que foi descrito no formidável 1984, por George Orwell.

Se, por um lado, a elite urbana aceita com indiferença a falta de liberdade política e a ditadura do Partido Comunista, pois reconhece que vive com certa comodidade, o grosso da população rural tem verdadeiro ódio do Partido Comunista (embora não possa manifestar essa insatisfação), pelo fato de não ter suas reivindicações sequer ouvidas, pelo elevado nível de repressão e pela enorme corrupção vigente nas repartições oficiais e organismos burocráticos.

Para Sorman, que faz questão de afirmar que gosta da China, tendo lá muitos amigos, não aceitando apenas o regime político imposto pelo Partido Comunista, a manutenção desse modelo depende fundamentalmente do sucesso e continuidade da globalização. Se Estados Unidos e Europa decidirem parar de comprar produtos chineses, o colapso será imediato. Mas não é isso que o autor deseja. Muito pelo contrário, o que ele espera é que a China consiga continuar com os avanços que vêm registrando nos planos econômico e comercial, mas que os frutos dessa evolução atinjam a todos os chineses e não apenas a uma minoria dessa gigantesca população. É isso que deixa claro com as palavras finais do Prefácio de seu livro, um misto de preocupação e esperança. A preocupação:

O que é mais preocupante é a questão da sucessão. Até agora, os sucessores de Mao, começando por Deng Xiaoping (apesar de Tiananmen) têm se comportado de forma racional. Porém, não há nada que garanta que o próximo déspota será lúcido. Mesmo que o Partido [Comunista] tenha conseguido propor quatro déspotas relativamente esclarecidos, o processo de escolher um líder é obscuro. Não há nada que diga como o próximo será. Facções destrutivas tornarão o resultado imprevisível. Sem eleições, a China só pode contar com a sua sorte para que a sucessão corra bem.

A esperança:

Até o momento presente, a sorte tem favorecido a China. Se a sua fase de sorte continuar, o status quo será mantido. O Partido tem um maquinário em perfeito funcionamento para lidar com os protestos. Além disso, os chineses detestam a desordem, a sua história fez com que desenvolvessem um medo profundo da revolta civil. A liderança do Partido sabe como manipular esse medo. Porém, a sorte é temporária e o medo também. No fim, o despotismo esclarecido do Partido será substituído pela ditadura militar, pelo caos ou, se formos otimistas, pela democracia liberal. Pessoalmente, penso que não há razão cultural ou de qualquer outra natureza que impeça que a China se torne uma nação livre como qualquer outra.

Referências e indicações bibliográficas

BRAGA, Humberto. O Oriente é vermelho. 10 ª ed. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.

GARZA, Hedda. Mao Tse-Tung. Série Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

HENFIL. Henfil na China: antes da coca-cola. 9ª ed. Rio de Janeiro: Codecri, 1981.

HOOBLER Dorothy e HOOBLER, Thomas. Chu Em-Lai. Série Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

LUBETKIN, Wendy. Deng Xiaoping. Série Grandes Líderes. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

ORWELL, George. 1984. 17ª ed. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1984.

SORMAN, Guy. O Ano do Galo: Verdades sobre a China. Tradução de Margarita Maria Garcia Lamelo. São Paulo: É Realizações, 2007.

Referências e indicações webgráficas

MEDEIROS, Carlos Aguiar de. A China como um duplo pólo na economia mundial e a recentralização da economia asiática. Revista de Economia Política, vol. 26, n° 3, São Paulo, Julho/Setembro de 2006. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-31572006000300004&script=sci_arttext&tlng=.