O excepcionalismo americano

Por Humberto Pereira da Silva

as-ideias-importam

 

Com a eleição presidencial americana neste ano, mais uma vez a atenção da mídia e de especialistas se volta para a realização desse rito político. Rito que, aqui no Brasil, é acompanhado de dúvidas e necessidades de esclarecimentos sobre como ocorre a eleição para presidente nos Estados Unidos. Ora, apesar do bombardeio de informações e imagens midiáticas, é certo que a realidade política e histórica americanas é conhecida por lapsos, flashes, mesmo para muitos formadores de opinião.

Isso decorre em grande parte, suponho, da exígua produção acadêmica específica entre nós, tanto quanto de certo “desinteresse” editorial pela tradução de importantes historiadores e especialistas em Estados Unidos. Uma ilustração sintomática: a história da maior potência do planeta é tratada em disciplina optativa no curso de História da USP.

Uma justificativa para essa carência talvez resida no arraigado antiamericanismo de muitos em nossa classe intelectual. Fato é que, paradoxalmente, inundados pela propaganda ideológica americana, sabemos tanto e tão pouco sobre aquele país. Daí a importância de um livro como As ideias importam – o excepcionalismo americano no alvorecer da superpotência (Aprris Editora, 159 pág.), da professora Fernanda Petená Magnotta, lançado recentemente.

Especialista em Teoria Política, Relações Internacionais e Análise de Política Externa com foco nos Estados Unidos, o livro de Fernanda Magnotta resultou de suas pesquisas no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (PUC-UNESP-UNICAMP). Em síntese, apresenta um recorte que cobre a imersão americana no cenário internacional do fim da Primeira Guerra Mundial ao início da Guerra Fria.

Tem-se, então, um oportuno e rico painel da política externa americana desde o governo de Woodrow Wilson, cujo marco é a entrada do país na Grande Guerra em 1917, até os primeiros anos do governo de Harry Truman, que a partir de 1947 se vê frente à escalada comunista no leste europeu e à ameaça de conflagração nuclear com a União Soviética. Nesse arco histórico de três décadas, Fernanda Magnotta procura mostrar como os presidentes americanos estabeleceram políticas que punham na ordem do dia um maior ou menor envolvimento do país no palco político internacional.

Potência econômica e industrial nos conformes da livre iniciativa em ritmo crescente na sequência da Guerra de Secessão e do avanço para o oeste, no início do século XX os Estados Unidos eram, não obstante, um poder coadjuvante no equilíbrio político e militar entre os impérios que gravitavam em solo europeu. Ocorre que, como mostra o livro, desde o processo de colonização da América os peregrinos no novo mundo cultivavam o sentimento de excepcionalidade da nação em formação.

Vale dizer: a partir de pressupostos religiosos, formou-se a mentalidade de um país cujo “destino manifesto” guardava algo de povo eleito por Deus, portanto em consonância com uma mensagem de fundo bíblico. Em decorrência, um país fadado a ter o papel de protagonista na ordem mundial.

É óbvio que, quem quer que conheça minimamente a mentalidade do povo americano, desconheça também  o quanto este se vê como único. O que o livro de Fernanda Magnotta faz é mapear, esquadrinhar e pontuar com precisão e rigor metodológico os instantes de formação mental da visão que os americanos têm de si próprios. Assim, com rigor conceitual, ela mostra que o sentido de excepcionalidade é uma característica do gênio americano e que esta o diferencia do de outras nações.

Grande parte da riqueza do livro, então, está em descortinar a natureza essencial do que faz de um indivíduo um americano. Em consequência, sendo esse indivíduo parte de um corpo social, o que faz do corpo social uma nação. Por isso, Fernanda Magnotta lembra-nos que um inglês é um inglês e sempre será um inglês; já um americano é aquele que partilha o conjunto de princípios que deram origem e dão sentido à nação.

Expostas as bases conceituais do excepcionalismo, o livro passa a descrever e examinar com cuidado histórico os caminhos da política externa americana nas três décadas em pauta. Assim, de modo pontual, o que estava nas entrelinhas das decisões capitais dos atores políticos entre Wilson e Truman. Isto é, as razões de fundo que levaram os governos Warren Harding, Calvin Coolidge e Herbert Hoover a propagarem o American Dream; assim como o governo de Franklin Roosevelt a entrar na Segunda Guerra Mundial.

Para aqueles que têm informações esparsas e fragmentadas da política e da história americanas, este As ideias importam é um oportuno guia; principalmente para que se questionem preconceitos – o antiamericanismo é o mais notável – sobre o que está por trás da mentalidade formadora dos Estados Unidos. A esse respeito, o excepcionalismo é o ponto fulcral; desconhecê-lo e se tem daquele país uma pátina, que invariavelmente se expressa por meio de slogans cuja compreensão escapa às razões de fundo acerca da supremacia econômica, política e militar americana nos dias de hoje.

Ao trazer à tona razões de fundo – as ideias importam – Fernanda Magnotta contribui para que tenhamos elementos para pensar melhor, de forma matizada, no porquê de os Estados Unidos serem, efetivamente, uma superpotência. Trata-se, portanto, de um livro que merece ser lido por todos que queiram conhecer aquele país para além dos posts em propagandas ideológicas (o que quer dizer self made man?) ou dos slogans antiamericanos nas esquerdas anticapitalistas.

Humberto Pereira da Silva

Humberto Pereira da Silva é professor de Filosofia no curso de Artes Visuais e de Técnicas de Pesquisa no de Economia na FAAP. Também exerce a atividade de crítico de cinema, sendo colunista regular da Revista de Cinema e do site Cinequanon. É autor dos livros “Ir ao cinema: um olhar sobre filmes” (Musa Editorial, 2006), “Pragmática da linguagem e ensino de ética: quando dizer não é fazer” (Paco Editorial, 2012) e “Glauber Rocha: cinema, estética e revolução” (Paco Editorial, 2016).