Marx, Mises e as manifestações

A economia e a intervenção governamental

“Infelizmente não foi inventado caminho fácil e indolor para a saída das crises econômicas. Desequilíbrios, distorções, excesso de dívida e desemprego só se corrigem com austeridade, sacrifício e recuperação da confiança.”

Celso Ming

Das diversas imagens marcantes que puderam ser vistas nas manifestações de rua que se multiplicaram em dezenas de cidades brasileiras no dia 16 de agosto, um cartaz exibido na Avenida Paulista chamou minha atenção de forma especial. Nele estava escrito em letras garrafais: MENOS MARX E MAIS MISES.

Fiquei imaginando quantas pessoas, entre as milhões e milhões que tiveram chance de se deparar com o cartaz ao vivo ou pela TV, tinham condições de saber o que estava por trás daquelas palavras.

Por acreditar que o número de pessoas que entendeu o significado das palavras contidas nesse cartaz seja muito reduzido, ouso fazer um pequeno comentário a respeito.

Marx e Mises simbolizam, naquele cartaz, as duas formas extremas de ver a necessidade da intervenção governamental na economia. Num extremo, representados por Marx no cartaz, encontram-se os adeptos do socialismo; no outro, representados por Mises, os adeptos do liberalismo.

Os socialistas, em suas diversas ramificações (marxistas, fabianos, anarquistas, sindicalistas, comunistas, utópicos etc.), acreditam que a intervenção governamental é imprescindível para o bom funcionamento da economia, cabendo aos órgãos governamentais – nos diferentes níveis administrativos – a tomada das decisões fundamentais da economia, representadas na teoria pelas questões “o que, quanto, como e para quem produzir?”. Acreditam, em maior ou menor grau, na coletivização dos meios de produção e na centralização decisória.

Seu grande mentor foi Karl Marx, que entre outras obras deixou dois legados fundamentais: O manifesto comunista, publicado em 1848 e escrito em parceria com Friedrich Engels, e sua obra magna, O capital, publicada pela primeira vez em 1867. Na primeira, Marx e Engels centram o foco na conscientização da classe trabalhadora, como expressa magnificamente o trecho que se segue:

Os comunistas não procuram ocultar seus pontos de vista ou objetivos. Declaram abertamente que suas metas só podem ser atingidas pela derrocada à força de todas as condições sociais existentes. Deixem que as classes governantes tremam de medo diante de uma revolução comunista. Os proletários não têm nada a perder, a não ser seus grilhões. E têm tudo a ganhar. Trabalhadores de todos os países, uni-vos!

Na segunda Marx faz uma extensa e detalhada análise do caráter exploratório do que ele chama de modo de produção capitalista. Entre as inúmeras ideias contidas no livro, destaca-se a teoria da mais-valia, que consiste no processo de apropriação, pelo capitalista que detém os meios de produção, do excedente gerado pelo trabalhador, que não sendo proprietário nem de terra nem de capital, vive da venda de sua força de trabalho.

Em realidade, Marx faz uma dura crítica à forma pela qual a produção de bens e serviços era organizada na maior parte dos países europeus e que tem sua origem nas ideias no iluminismo do século XVIII, um movimento filosófico-cultural cujas propostas fundamentais eram a defesa da liberdade em todas as suas dimensões, a crença nos valores individuais da pessoa humana e a supremacia da razão. Adam Smith, professor de filosofia moral que é tido por muitos como o pai da economia, constitui-se no maior expoente dos pensadores econômicos que acreditam que o homem é movido pelo auto interesse, como bem ilustrado por um dos trechos mais reproduzidos de seu grande livro A riqueza das nações, publicado em 1776: “Não é da benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que esperamos nosso jantar, mas da consideração que eles têm pelo seu próprio interesse. Dirigimo-nos não à sua humanidade, mas à sua autoestima, e nunca lhes falamos das nossas próprias necessidades, mas das vantagens que advirão para eles”. Nesse sentido, a melhor forma de promover o crescimento econômico e a melhoria das condições de vida da sociedade é por meio de uma intervenção governamental mínima, necessária apenas para cuidar de algumas funções que lhe são próprias, tais como defender a sociedade contra ameaças externas (defesa e diplomacia), estabelecer e fazer cumprir a lei e a ordem (justiça e polícia) e garantir o provimento de bens e serviços que não sejam capazes de atrair i investimento privado.   Em decorrência dessa visão, Smith e seus seguidores, rotulados como liberais e também com diversas ramificações ao longo dos tempos (clássicos, marginalistas, neoclássicos, austríacos, monetaristas, neoinstitucionalistas etc.) acreditam que a melhor forma de organizar a sociedade é através da defesa da propriedade privada dos meios de produção e do exercício da livre iniciativa empresarial, cabendo ao mercado, por meio do sistema de preços, definir “o que, como, quanto e para quem produzir”. Nesse sistema, quanto menor a intervenção governamental, melhor para a sociedade.

Ludwig von Mises, o Mises do cartaz, pertence à terceira geração da escola austríaca de economia, cuja origem remonta à revolução marginalista da segunda metade do século XIX, com Carl Menger. Mises e Friedrich Hayek são os grandes expoentes dessa escola no século XX.

Mises e Marx representam, no cartaz, os extremos contra e a favor da intervenção governamental na economia, respectivamente. Resta, numa brevíssima e genérica análise, considerar Keynes, que defende uma posição intermediária entre a dos liberais e a dos socialistas. Para este economista inglês, tido por muitos como o maior economista do século XX, que tem em A teoria geral do emprego do juro e da moeda, publicada em 1936, sua maior obra, é indispensável uma intervenção parcial do governo na economia, principalmente quando se observam situações em que se combinam recessão e desemprego.

De acordo com Eduardo Giannetti, os pilares básicos da visão keynesiana podem ser assim sintetizados: 1) a defesa da economia mista, com forte participação de empresas estatais na oferta de bens e serviços e a crescente regulamentação das atividades do setor privado por meio da intervenção governamental nos diversos mercados particulares da economia; 2) a montagem e ampliação do Estado do Bem-Estar, garantindo transferências de renda extramercado para grupos específicos da sociedade (idosos, inválidos, crianças, pobres, desempregados etc.) e buscando promover alguma espécie de justiça distributiva; e 3) uma política macroeconômica ativa de manipulação da demanda agregada, voltada acima de tudo para a manutenção do pleno emprego no curto prazo, mesmo que ao custo de alguma inflação.

A história tem revelado num plano – o teórico – um intenso debate com base nessas três visões de mundo, liberal, socialista e keynesiana, e noutro – o real – uma intensa e não raras vezes apaixonada disputa entre os agentes políticos e integrantes das diversas forças sociais com o objetivo de tentar demonstrar a superioridade de uma ou de outra.

No calor dos debates ou das disputas, exageros são cometidos e meias-verdades proliferam, até mesmo entre adeptos da visão keynesiana, que, pelo menos em tese, deveria ser a mais comedida das três, por ocupar posição intermediária entre dois extremos. Como bem observou Celso Ming, em sua coluna do jornal O Estado de S. Paulo intitulada Lições mal assimiladas, a intransigente defesa de políticas econômicas anticíclicas como contraponto à proposta de ajuste fiscal supõe que “políticas anticíclicas sempre possam ser colocadas em prática, mesmo com forte desequilíbrio fiscal, como acontece agora”. Justificando sua crítica, complementa o comentarista: “O Brasil está muito próximo da situação em que a dívida deixa de ser sustentável. Quando isso acontece, a inflação dispara, o crédito some, a economia fica inadministrável e a crise política tende a engolfar a crise econômica, também como agora. Botar ainda mais lenha nessa fogueira é provocar novos desastres”.

Esses exageros e meias verdades contribuem para tornar a compreensão do cenário extremamente difícil para e esmagadora maioria da população que não teve oportunidade de conhecer o fabuloso mundo da história do pensamento econômico.

Referências e indicações bibliográficas

BRUE, Stanley L. História do pensamento econômico. Tradução de Luciana Penteado Miquelino. São Paulo: Pioneira Thomson Learning, 2005.

GARSCHAGEN, Bruno. Pare de acreditar no governo: por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o Estado. Rio de Janeiro: Record, 2015.

GIANNETTI DA FONSECA, Eduardo. Desenvolvimento e transição econômica: a experiência brasileira. Paper preparado para Workshop Universitário promovido pelo Grupo das EBCEs – Empresas Brasileiras de Capital Estrangeiro. Mimeo.

HAYEK, Friedrich August von. O caminho da servidão. Tradução e revisão de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. 5ª ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.

______________ Os fundamentos da liberdade.Brasília: UNB, 1983.

______________ Law, legislation and liberty. Chicago: The University of Chicago Press, 1983.

______________ A arrogância fatal: os erros do socialismo. Tradução de Ana Maria Capovilla e Cândido Mendes Prunes. Revisão de Ann Leen Birosel. Porto Alegre: Instituto de Estudos Empresariais/ Editora Ortiz, 1995.

KEYNES, John M. Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. Apresentação de Adroaldo Moura da Silva; tradução de Mário R. da Cruz. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas)

MARX, KARL. Para a crítica da economia política; Salário, preço e lucro; O rendimento e suas fontes: a economia vulgar. Introdução de Jacob Gorender. Traduções de Edgard Malagodi, Leandro Konder, José Arthur Giannotti e Walter Rehfeld. São Paulo: Abril Cultural, 1982. (Os Economistas).

______________ O capital: crítica da economia política. Apresentação de Jacob Gorender. Coordenação e revisão de Paul Singer. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R.Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas).

MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. O manifesto comunista. Tradução de Maria Lucia Como. 15ª ed. Rio de Janeiro Paulo: Paz e Terra, 1998.

MISES, Ludwig von. Ação humana – Um tratado de Economia. Tradução de Donald Stewart Jr. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1990.

PIRES, Luciano. Me engana que eu gosto: dois brasis jamais somarão um Brasil inteiro. São Paulo: Reino Editorial. 2015.

SMITH, Adam. A riqueza das nações: investigação sobre a sua natureza e suas causas, com a introdução de Edwin Cannan. Apresentação de Winston Fritsh. Tradução de Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Economistas)

Referências e indicações webgráficas

MING, Celso. Lições mal assimiladas. O Estado de S. Paulo. Disponível em http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,licoes-mal-assimiladas,1744363#.